3. Não vale a pena viver, se não for por algo que estejamos dispostos a morrer

Não vale a pena viver, se não for por algo que estejamos dispostos a morrer. E aqui, no Burundi, senti isso mesmo com muita força. É uma força que nos esmaga. É uma força arrebatadora. É a força da inspiração.

Foi a primeira vez que fui para um país que não estava em guerra. E Bujumbura é uma cidade simpática, com um clima maravilhoso, rodeada de montanhas verdejantes até perder de vista, e o lago Tanganika que estica desde o Burundi e fazendo depois durante centenas de quilómetros a fronteira entre o Congo e a Tanzânia. A segurança não era muito apertada, pelo que podíamos ir a pé de casa para o hospital que eram 5 minutos, e podíamos ir jantar fora, correr no parque, ou dar um mergulho numa piscina de hotel, ao fim de semana. É um sítio onde eu adorava viver, onde eu me imagino a passar 6 meses do nosso inverno, se um dia concretizar esse sonho de estar 6 meses no Porto, e 6 meses num outro local qualquer.

Comparado com o que já vi e já vivi, parecia um “passeio no parque”, apesar de, enquanto médico as necessidades serem gritantes. O Burundi é um dos países mais pobres do mundo, disputa o último lugar nos rankings de desenvolvimento, saúde, educação e por aí fora. Mas apesar de não haver guerra, havia um clima no ar de uma tensão histórica sem paralelo. Alguns chamavam-lhe genocídio silencioso, outros chamavam-lhe pré-genocídio.

O Burundi tem em quase tudo muitas semelhanças com o Ruanda. O tamanho, o relevo geográfico, a história, e infelizmente as divisões, vamos lhe chamar éticas para simplificar, que culminaram num genocídio em 1994. O genocídio do Ruanda é dos episódios mais horrendos da história recente da humanidade, onde em cerca de 3 meses foram chacinados perto de 1 milhão de ruandeses a sua maioria à catanada, e também no Burundi, embora numa expressão muito menor, também houve um genocídio de Hutus a matar Tutsis. Os Tutsis sempre foram a minoria que controla a maioria, são mais ricos, mais poderosos, com maior nível de educação e foram também favorecidos pelos colonos Belgas.

Aqui, no Burundi, em 2018 o presidente era Pierre Nkurunziza e sendo Hutu, viveu a sua presidência sobre a acusação de perseguir, torturar, massacrar toda a sua oposição Tutsi. Mas estas dicotomias nunca são assim tão simples. O que é facto é que se vivia um clima de repressão total, e uma paz podre na iminência de explodir a qualquer momento. Eu vivi um momento particularmente difícil, em que o presidente do Burundi exigiu a todas as ONGs que entregassem uma lista dos seus trabalhadores, nomeando a sua etnia, Hutus ou Tutsis. Os tiques ditatoriais do presidente já o afastavam do mundo, mas esta exigência punha em causa a assistência humanitária a todo um país que dela precisa, como pão para a boca. E quem não o fizesse era convidado a sair do país.

E agora, o que fazer? Era a pergunta que a Médicos Sem Fronteiras fazia a si própria. Como tantas vezes nas nossas vidas é escolher entre o mau e o péssimo? Sair é deixar milhões sem assistência médica. Aceitar as condições é ser conivente e cúmplice duma atitude sectária, discriminatória, divisionista e que pode ser precursora de maldades colectivas que a história não gostaria de rever.

Quem nada percebe sobre ajuda humanitária, acha sempre que um euro que se dá, é um euro que tem de chegar a quem precisa e desconhece por completo a complexidade do trabalho humanitário. O humanitarismo por definição é apolítico, mas todos sabemos que isso é um pensamento utópico. Cada vez que respiramos estamos a fazer um acto político. Até onde é que se pode negociar com o diabo, para um bem maior? Perguntas para as quais ninguém sabe a resposta.

Algumas ONGs decidiram de imediato sair do país. Não aceitando estas condições e também antevendo tensões e ondas de violência como noutros tempos. Algumas, poucas, ONGs, decidiram aceitar e entregar a lista dos seus colaboradores e nomeá-los segundo a etnia.

É preciso acrescentar que pessoas como eu não são ninguém neste processo de decisão. Eu sou apenas um de muitos médicos que estão em missão. Cada país tem um chefe de missão (Head of Mission) que tem uma missão muito longa de cerca de 2 anos, e que gere, todos os projectos, todas as decisões de fundo de todos os hospitais ou centros de saúde dos Médicos Sem Fronteiras no Burundi. Neste caso a chefe de missão, discutiu também a fundo com as chefias dos Médicos Sem Fronteiras em Bruxelas. Mais uma vez reforço, o profissionalismo da ajuda humanitária reflecte-se nestas questões e em infinitas outras que as pessoas não fazem ideia, mas requerem muita trabalho, conhecimento, competência e experiência. E por isso um dos Big Boss dos MSF veio para Bujumbura, para tentar falar com ministros ou mesmo o presidente do Burundi e para participar bem de perto neste processo de decisão. Por acaso, eu já o conhecia. Tinha sido meu chefe de missão na Rep. Centro-Africana, e chegamos a jogar futebol juntos e a partilhar boas conversas à volta de uma cerveja. É uma personagem emblemática, com um porte físico que impressiona, com ar de durão mas ao mesmo tempo muito humano, e com um sentido de humor contagiante, além de uma experiência de África e MSF de anos e anos. Vou-lhe chamar José.

Este dilema era conhecido de todos, era discutido no corredor por todos, e era uma preocupação que pairava no ar. Para além das vidas que os MSF representam, temos também os postos de trabalho. São centenas de pessoas que trabalhavam neste pequeno hospital, cujo futuro estava encurralado nesta decisão. Ceder à denúncia da etnia é péssimo, mas as pessoas sabem que o país assim está dividido há muito tempo… e perder o emprego é uma outra miséria num país já de si paupérrimo.

Certo dia, o José convoca uma reunião com todo o staff do hospital, para expor o problema e o dilema que estávamos a viver e com isso também auscultar a opinião do staff nacional, pois no fundo isto é deles, para eles e para o seu povo. Bem ao estilo africano, estamos todos numa palhota de madeira, com bancos corridos, bem encostadinhos uns aos outros, e ainda alguns de pé. E eu e os restantes expatriados também lá estávamos, com um nervoso miudinho que se respirava no ar quente, éramos cerca de 40 ou 50.

O José impunha respeito, e em pé de frente para a plateia expõe tudo em pratos limpos, num francês que para mim é muito claro, pois não é um francês nativo, é um francês carregado de sotaque flamengo. Diz-nos que por um lado o Burundi é um país soberano é que o seu presidente pode decidir o que bem entender por outro lado os MSF não querem deixar de exercer a sua missão no Burundi que salva tantas vidas, e emprega tantas pessoas, mas também não pode ceder a imposições que do ponto de vista humanístico, são aberrações inaceitáveis. Nomear as pessoas pela sua etnia vai contra tudo o que os MSF representam.

Depois de uma exposição muito clara e muito frontal do dilema, o José passa a palavra à plateia. São médicos, enfermeiros, higienistas, psicólogos, fisioterapeutas, logísticos, administradores, de tudo um pouco. E há um que se levanta, e pede a palavra. Vou-lhe chamar Hugo.

O Hugo era o enfermeiro-chefe dos cuidados intensivos, onde tínhamos os doentes mais críticos, mas com equipamento muito simples, nada tem de parecido com o que para nós são os cuidados intensivos. Como eu era médico responsável pelos cuidados intensivos, trabalhava muitas vezes bem de perto com o Hugo. Era competente, organizado, conhecedor das suas responsabilidades, e era ainda jovem, talvez um pouco mais novo do que eu. Várias vezes tivemos discussões sobre a orientação dos doentes. É normal haver discussões, e ainda bem que as tínhamos, pois são sempre momentos de potencial aprendizagem de parte a parte. Confesso que por vezes me irritava a teimosia do Hugo, pois por vezes vinha-me com guidelines dos MSF para confrontar algumas das minhas decisões clínicas. A diplomacia é tudo numa missão. De nada vale tudo o que sabemos, se não tivermos uma boa relação com o staff nacional e assim conseguirmos passar conhecimento e experiência. Eu tentava-lhe explicar que o raciocínio clínico de quem sabe o que faz é a pedra basilar de todas as decisões. E completava as minhas posições com explicações detalhadas e muitas vezes documentos que solidificavam as minhas decisões. E assim convivíamos bem, mas com uma certa crispação latente. Eu admirava-o e respeitava-o muito, mas não podia ceder nas decisões médicas baseadas no meu melhor pensamento clínico sobre cada doente.

Mas quando o Hugo pede a palavra na reunião na palhota, eu congelei as palavras dele na minha cabeça para todo o sempre. Levantou-se no meio de todos os outros apertadinhos, com voz firme, dirigindo-se a todos, mas com o olhar directo ao José. “Eu sou o Hugo, e sou o enfermeiro-chefe dos cuidados intensivos. A minha família fez um grande esforço para eu poder estudar. E eu estudei muito, e trabalhei muito para chegar onde cheguei. Tenho orgulho no meu percurso, mas tenho ainda mais orgulho em trabalhar para os MSF que nos trata todos por igual. Se não fosse uma organização como os MSF eu nunca teria chegado onde cheguei, pois não sou da etnia protegida pelo sistema político. Eu não sei o que me vai acontecer. Até posso ficar sem dinheiro para dar de comer aos meus filhos, mas não troco a luta pela igualdade por nada. Eu adoro o meu país, mas não aceito nada que não seja, um tratamento igual para todos os cidadãos do Burundi! Somos todos iguais!”

Eu fiquei todo arrepiado no meio daquela tensão. A plateia bateu palmas em uníssono, com gritos de apoio e lágrimas de comoção. O Hugo sentou-se calmamente e o José esboçou um grande sorriso, daqueles que vem do coração.

Foi dos momentos mais comoventes da minha vida, e onde senti a força do humanitarismo a bater mais forte no meu corpo inteiro. Não tem preço sentir o poder deste nível de inspiração.

Os MSF nunca deram as listas dos trabalhadores por etnias, e não sei bem como, foram continuando a trabalhar no Burundi naquela clima de bomba-relógio, de pré-genocídio.

Não vale a pena viver, se não for por algo que estamos dispostos a morrer. Obrigado Hugo, e obrigado MSF por mais esta lição.

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