Tinha o intestino todo de fora. Todo. Depois de ter visto tanta coisa, fica sempre difícil dizer isto sem ter a certeza que a memória não me está a falhar, mas nunca tinha visto nada assim. Um rapazinho de 17 anos, de pequena estatura e com um furo na parede abdominal por onde saía todo o intestino delgado e mais uns rasgões nas nádegas, na coxa e na perna, e a sua condição geral era de extrema preocupação. “O que é que lhe aconteceu?” perguntei eu. “Foi atacado por um hipopótamo”.
Vou-lhe chamar Boniface. Já cá volto ao rapaz.
Desde há muito tempo que ouvia falar que os hipopótamos são os animais que matam mais pessoas em África, o que me deixa surpreendido com tantos animais potencialmente perigosos, como leões, hienas, búfalos, etc… e sendo o hipopótamo herbívoro e tão amoroso e fofinho é estranho vê-lo como um assassino. Mas a verdade é que por esmagamento ou mordidela podem ser fatais num segundo, e aquela boca bem aberta com as presas enormes e pontiagudas põem qualquer herói em sentido. Acresce a isso o facto de que estão muitas vezes nas beiras lagos ou beiras rios, onde muitos africanos fazem a sua vida, como se lavar, lavar roupa, pescar, etc… e quando acidentalmente se dá toque neste gigante, é fácil de prever quem sai a perder. Por esta altura da minha vida, já tinha tido a sorte de ver uma boa dose de vida animal africana, mas algo me dizia que ainda assim o Burundi tinha algo para me surpreender.
Normalmente, antes de partir em missão, tento ler livros, ver filmes e documentários, no fundo de tudo um pouco que me faça compreender melhor o desafio e a viagem que se aproxima. Sobre o Burundi fui dar de frente com um documentário sobre o maior crocodilo do mundo. Que história absolutamente incrível. Algures nos anos 80 uma sucessão de ataques a populações ribeirinhas, no parque natural de Rusizi, a poucos quilómetros de Bujumbura, um crocodilo matou centenas de burundeses que faziam a sua vida a beira rio, ou foram mesmo devorados perto das suas casas. Pelas marcas, pegadas, dentadas, e alguns relatos de quem o terá visto, fica registado para a história como o maior crocodilo do mundo com 12 metros de comprimento e 100 anos de vida… o terror do rio, das suas margens e do lago Tanganika… Adivinhem como se chamava o monstro? “Gustav”. Pois é. Não há coincidências… Mentira, claro que há. Aliás, é tudo o que há nesta vida, e esta é apenas mais uma.
Mas sendo o Gustav uma estrela do Burundi, que chegou a atrair as curiosidades de todo o mundo cientifico, são os hipopótamos a imagem de marca deste pequeno país. Quase toda a gente que já passou algum tempo nesta beira lago já avistou estes mamíferos gigantes, e também somos permanentemente relembrados para não entrar para dentro do lago pelo perigo de iniciarmos um jogo de forças com este animal que não vamos ganhar, e os hipos fazem de tal forma parte da vida desta gente que uma vez até me mostraram um vídeo de 2 hipopótamos a passear pelas ruas de Bujumbura acompanhados pela loucura da multidão divida entre estratégias de os fazer voltar ao lago, e o rejubilo por este espetáculo circense do mundo real.
Uma vez, num sábado ao final da tarde, sentei-me numa esplanada à beira lago que fica numa pequena baia que servia como um pequeno porto piscatório. Estava com um amigo e uma amiga, e deixávamos que a cerveja escorregasse para embalar as histórias de vida, de cada um, dos nossos países, e claro, do que íamos vendo, aprendendo e fazendo para ajudar este povo que tanto precisa. Não sei se era a conversa, se era a companhia, se era o calor, se era a paisagem, se eram as saudades de casa, ou se de tudo um pouco. Sei sim que a cerveja estava melhor do que nunca e que aos poucos ia-me refrescando as ideias enquanto estas eram baralhadas pelos reflexos do pôr-do-sol no lago. A esplanada ficava uns metros acima do solo, e por sua vez mesmo em cima do lago Tanganika. A determinado momento a minha bexiga precisava de um alívio e levantei-me para tal. Enquanto ia e vinha ao quarto-de-banho, que ficava no edifício principal, estava num daqueles momentos em que a vida nos obriga a fazer um ponto da situação… “que viagem, que sítio incrível, que gente boa, que sorte a minha, que privilégio, que beleza… mas também que pobreza, que tristeza, que potencial, e que é que eu posso fazer mais para que o mundo seja mais justo para quem tanto da justiça precisa?…” …. e é envolto nestes pensamentos que ouço um rugir “EEEAAAAAAAAGGGGGGGHHHHHHHHHHHHH” de uma intensidade como jamais ouvira. Senti a pele toda arrepiada, e um nervosinho no corpo que me fez apressar o passo de volta à explana, enquanto na minha cabeça ressoava ao ritmo dos tambores: “Não acredito… Não pode ser… O que foi isto?!”… Quando cheguei à mesa dos meus amigos, lá estavam grudados no reflexo do pôr do sol no lago que se fazia confundir com o reflexo do mesmo na pele destas toneladas de força pura da natureza, a que chamamos de hipopótamo, e que parecia estar ali a uns 20-30 metros de nós para nos pulverizar a conversa com pós mágicos, magia esta que só África nos desvenda. Ora vinha a cima, ora ia a baixo de água e de quando em vez abria aquela boca infinita para imitir o seu rugir com um estrondo de quem parece querer dizer ao mundo que nada se assemelha ao poder da mãe natureza… Ajuda a nos fazer sentir pequeninos, simples, humildes, e relativizar toda a nossa visão de mundo. Mesmo depois de já ter visto hipopótamos, mais do que uma vez noutras viagens, foi das experiências com animais mais intensas que tive na vida, por estar a acontecer ao acaso, nas bordas de uma capital, sem pretensão ou luxos, apenas uma cerveja na mão, boa gente, e o coração a sentir que por vezes as maiores maravilhas do planeta estão escondidas debaixo da maior miséria, e que sorte tenho eu por poder estar em contacto com os dois. As maravilhas para as apreciar, e as misérias para as tentar emendar. São ambas maravilhosas de se sentir por perto, pois ambas nos ensinam muito. E lá ficámos a ver o bicho gigante por perto, até não haver mais nenhum raio de luz, e muito pouco sangue no corpo porque que fomos sugamos pelos mosquitos.
De volta ao Boniface, e aos seus intestinos de fora. Entro no serviço de urgência a meio da noite juntamento com o cirurgião, depois te termos sido alertados deste caso grave. O cirurgião era Jean Paul, um experiente cirurgião geral da Costa do Marfim. Uma pessoa gentil, afável, dinâmico, extremamente trabalhador e dedicado aos doentes. Não é frequente ver médicos que só trabalham em missões humanitárias e mantém este espirito de missão. Aprendi a admirar mesmo muito Jean-Paul, e quando assim é, é um prazer trabalhar. Terei tempo noutras histórias para melhor expressar os porquês desta admiração.
Cada um olha para o seu lado da responsabilidade. Para o Jean Paul, a decisão é linear. Com a barriga aberta a indicação cirúrgica é imediata, resta saber se há algo mais a ter em conta do ponto de vista do trauma. Para mim a preocupação é enorme. O ataque do hipopótamo foi há 6 horas, foi o tempo que demorou Boniface a chegar de uma aldeia longínqua. E os sinais vitais que o médico da urgência me transmitiu revelam sinais de choque evidentes. Taquicardia, taquipneia, preenchimento capilar das extremidades lentificado, diurese diminuída. De imediato dou instrucções para que se preparam várias unidades de sangue. O médico burundês chama-me à atenção que a hemoglobina estava normal. E eu explico-lhe aquilo que já expliquei centenas de vezes em missão e outras tantas aos médicos mais novos em Portugal: o valor da hemoglobina pouco nos diz no trauma agudo, da mesma forma que se perdemos metade do nosso café na chávena, temos menos cafeína total, mas a concetração da cafeína que lá está é a mesma. Logo na perda imeadita de sangue, concentração de hemoglobina e quantidade total de hemoglobina não se relacionam. Faço-lhe uma avaliação completa do trauma para concluir que tudo indicava que era apenas um trauma abdominal.
Não há tempo a perder, e vamos de imediato para o bloco. Eu tenho um dos enfermeiros de anestesia ao meu lado para me ajudar. Explico-lhe a minha visão. “Estes doentes enganam, estão mais instáveis do que parecem, e enquanto nos preparamos para o anestesiar, a nossa preocupação principal é a circulação: soros, transfusões e eventualmente perfusão de adrenalina.” Tal como eu imaginava com a indução da anestesia geral a cada da tensão arterial é muito abrupta. Assustadoramente abrupta. Abro todos os soros e ponho-lhe um cateter venoso no pescoço em segundos para a perfusão de adrenalina. Foi tudo muito rápido. Quase que morria logo ali. Seguramos-lhe a vida por pouco. E tento não transparecer o stress que passei ao cirurgião, para que ele esteja calmo para fazer o seu trabalho. Com os soros, as transfusões a entrar e a adrenalina, os sinais vitais vão estabilizando e começa a cirurgia. O Jean Paul é muito experiente e rápido. Abre-lhe o abdómen em segundos e inspeciona o que por lá se passa. E vai me passando alguma informação. “Gustavo não vejo nada a sangrar.” E eu penso: óptimo, previ mal uma hemorragia grave, e o choque seria apenas da desidratação e inflamação por ter o intestino de fora durante 6 horas. “Vejo aqui um ou outro furo no intestino, mas nada que não se resolva.” Diz-me o Jean Paul num tom de muita calma. Mas poucos minutos depois enquanto inspeciona a cavidade abdominal, muda o tom de voz para extrema preocupação… “Ele tem uma hemorragia retroperitonial, vou ter que abrir…” Ai, o meu coração acelera. O peritoneu é uma membrana muito rígida que envolve todo o abdómen, mas há vasos e outras estruturas que passam por baixo. Neste caso ele tem que abrir o peritoneu, mas que por sua vez está a conter a hemorragia. Ou seja, ao abrir o risco de hemorragia descontrolada é muito grande. Eu preparo-me para o momento, pedindo mais transfusões com urgência.
Quando o Jean Paul abre o peritoneu com o bisturi, só se vê sangue a jorrar em grandes quantidades. O nervosismo do Jean Paul é evidente, e eu sinto o Boniface a fugir-me das mãos. Mais soros, mais sangue a ser transfundido rapidamente e mais adrenalina… ainda assim os sinais vitais rapidamente me estão a dizer que o Boniface vai morrer ali. Até que o Jean Paul, diz “consegui… estanquei a hemorragia… era a veia ilíaca comum…”. É um veia de grande calibre que nasve da divisão da veia cava inferior que é a maior veia do nosso corpo.
Paulatinamente, os sinais vitais vão melhorando… o tom da comunicação entre nós deixa de ser de desespero… Afinal o meu feeling de que ele tinha uma hemorragia estava certo, mas isso nada interessa. O que importa é que o Jean Paul suturou a laceração da veia ilíaca, e depois voltou a dedicar-se ás perfurações do intestino com toda a calma, enquanto em recuperava o folgo à medida que os sinais vitais iam estabilizando ao ponto que consegui retirar a perfusão de adrenalina. O Boniface teve que ficar com uma ileostomia temporária, e no final da cirurgia estava relativamente normal e estável em termos de sinais vitais, e sinais de choque… tudo a correr bem.
Ufff… que susto, que descarga de emoções… por duas vezes senti que o íamos perder, mas seguramo-lo por um fio…
Nos dias que se seguiram fui sendo alimentado pelo sorriso do Boniface na enfermaria, mas que demonstrava um nível de literacia e compreensão muito básicos para a complexidade de ter uma ileostomia. Era um rapaz, mesmo muito simples e humilde de uma aldeia remota que ganhava a vida a pescar…
Uns tempos mais tarde levamos o Boniface ao bloco, para reconstruir o trânsito intestinal e tudo correu bem.
Não há nada mais poderoso do que a vida selvagem, mas desta vez no confronto entre o hipopótamo e o homem, ninguém perdeu a vida. Estima-se que morram 500 pessoas por ano, em África, devido a este mamífero de 2750 quilos, mas o nosso amigo não foi um deles.
Foi emocionante ver o sorriso do Boniface a sair do hospital, com muitas cicatrizes, mas cheio de saúde e com a vida toda pela frente.
Que Maravilha!!! Gosto muito dos seus relatos. Vivos, verdadeiros e tão humanos … ❤️Parabéns pelo excelente profissional e ser humano que é…
Desejo-lhe tudo de bom, sobretudo uma total recuperação e rápido regresso à sua normal. Bjinho
Pudesse o comum mortal saber que é disto que se trata, quando se tenta explicar o que é ser rico.
Obrigada Gustavo.