1001 Cartas Mosul

1001 cartas mosul

1. Guerra de Mosul

Em Junho de 2014 aconteceu o que ninguém imaginaria ser possível, o Estado Islâmico (ISIS ou Daesh) invadiu e tomou posse da segunda maior cidade do Iraque, Mosul. Pela primeira vez um grupo alimentado pelo terror controlou uma cidade tão importante, com 2 milhões de pessoas que sofreram o inimaginável pela repressão, castração e total ausência de liberdades físicas e intelectuais. “Pior que a morte” muitos diziam. Em Outubro de 2016 o exército Iraquiano, com o forte apoio de uma coligação internacional decidiu libertar/reconquistar Mosul e uma enorme fatia do norte do Iraque dominado pela Estado Islâmico. Foi das batalhas mais sangrentas que há memória. Foram bombardeamentos constantes, guerra porta à porta, bombistas suicidas, de tudo um pouco, com toda a população de Mosul, sequestrada dentro da sua cidade pelo Estado Islâmico, que lutava por uma obsessão ideológica e como tal iriam até ao último homem. O mundo assistia à maior carnificina de inocentes de que há memória, uma página da história que todos devíamos ter vergonha de contar. Ameaçados de morte pelo Estado Islâmico, à mercê das bombas que arrasaram uma cidade histórica com 3000 anos, à fome, à sede, sem cuidados de saúde e vulneráveis a um sem número de doenças da miséria humana. 50.000 pessoas morreram, uma cidade totalmente destruída, e 2 milhões de refugiados de gerações perdidas. Muita dor. Muito sofrimento. Muito triste. Toda a ajuda será sempre pouca.

2. Como aconteceu

Sendo eu ateu ou agnóstico (como preferirem), mas com uma educação católica, o respeito e a tolerância por todas as diferentes formas de estar na vida, têm sido em mim uma busca constante. O rótulo que cada um leva pela religião que professa diz-me pouco. A única coisa que verdadeiramente valorizo são as qualidades humanas. Sempre me questionei quem seria eu se tivesse nascido do “outro lado” do mundo? Quem seria se tivesse nascido na China? Ou na Somália? Ou na Rússia? Ou no Afeganistão? Ou na Índia? Ou na Coreia do Norte? Quem seria eu se tivesse passado fome? Ou se tivesse perdido a minha mãe no parto do meu irmão, por falta de cuidados médicos? Ou se toda a minha família tivesse morrido num bombardeamento? Nunca saberei a resposta a estas perguntas, mas tento que a construção da minha honestidade e justiça seja sempre sustentada na certeza de que somos todos iguais. E foi isso, também, que senti ao viver em algumas das realidades mais distantes e mais controversas aos olhos do ocidente. Vivi em algumas das culturas mais repressoras, sob interpretações muito intransigentes da religião, e, no entanto, também aí, conheci pessoas maravilhosas, de uma bondade incomparável, que me ensinaram muito mais do que as vidas que salvei ou tratei (e foram muitas). E trouxe para Portugal não só uma esperança reforçada na humanidade, mas também uma vontade muito grande de gritar aos do lado de “cá”, que quem está do lado de “lá” é tão ou mais bonito do que nós e merece o mesmo direito à vida com dignidade que as pessoas mais queridas da nossa vida. E, assim, quebrei mais um preconceito que não tinha, sobre o Islão. Do ponto de vista de um ateu, é uma religião tão bonita como as outras, que difunde valores muito bonitos preciosos, e cuja interpretação maléfica de alguns não pode ser confundida com a esmagadora maioria de pessoas maravilhosas que, por questões circunstanciais, professam esta fé. Falemos sempre de pessoas, esqueçamos os rótulos!

Sinto-me um privilegiado por ter vivido realidades tão distintas que completam e enriquecem a minha visão do mundo. E também por isso sinto necessidade de partilhar, de escrever, de dizer a quem quiser ouvir que todos podemos fazer algo para tornar este mundo melhor. Cada vez que parto em missão, sinto que carrego na minha mochila a minha família e amigos, a minha cidade, o meu país e, acima de tudo, todos os que acreditam no simbolismo do que vou fazer, todos os que reflectem os ideais dos Médicos Sem Fronteiras, todos aqueles que preferem enviar esperança em vez de enviar mais bombas.

E para esta minha missão no norte do Iraque, na cidade de Mosul, quis materializar a convicção de que há muitos que me acompanham na tentativa de aproximar os povos, e assim servir de mensageiro para todos os que se inquietam com os terríveis recentes acontecimentos de que este povo tem sido vítima.

Normalmente é antes de adormecer que tenho ideias que me inspiram a tentar fazer algo de bonito. Escrevi uma nota no telemóvel, e deixei marinar e maturar a revolução de boas energias que este pensamento ia tendo em mim. E foi no dia 25 de Abril de 2017 que juntei o tempo, a motivação e a ousadia de me servir da internet e das redes sociais para interpelar, agitar, provocar todos a quem consegui deixar o repto: Escrevam uma carta/mensagem para o população de Mosul que eu prometo, custe o que custar, que vou fazer chegar as vossas palavras a muitos que merecem a vossa atenção e compaixão.

E assim nasceu o texto que deu o mote a este livro:

“Cartas para Mosul

Dentro de 1 mês irei para o Iraque, Mosul trabalhar com os Médicos Sem Fronteiras. Eu tentarei fazer o que sei, salvar vidas num dos locais mais necessitados dos dias de hoje. Mas para além disso gostava de levar comigo mensagens de quem acreditar que não podemos ficar indiferentes a alguns acontecimentos trágicos da actualidade, como tem sido esta guerra por Mosul.

Em Junho de 2014, a maior cidade do norte do Iraque foi ocupada pelo Estado Islâmico, e desde Outubro de 2016 o exército Iraquiano tenta reconquistar esta importante cidade, numa guerra com consequências humanitárias dramáticas, que neste momento tem a cidade partida ao meio por uma linha de combate permanente. Nisto, há cerca de 400.000 pessoas encurraladas entre a espada e a parede com o propósito de escudos humanos. À mercê das bombas, de maldades e atrocidades, esfomeadas e desprovidas de tudo, inclusive de esperança.

Eu gostava de lhes dizer, que nós acreditamos que eles são seres humanos, que nós nos preocupamos e que tudo gostaríamos de fazer para que possam ter uma vida digna.

Irei recolher e compilar num livro, todas as mensagens/cartas que forem bem intencionadas e farei com que chegue às pessoas certas um reforço de esperança, um aquecer da alma que vos saia do coração, fazendo o difícil exercício de nos projectarmos naquilo que eles estão a passar.

Vou vos poupar das imagens de horror… das mortes, dos queimados, das decapitações, dos hospitais a transbordar de feridos… Mas quem vai estando atento terá uma ideia do sofrimento atroz que este povo tem estado sujeito!

Acredito mesmo que é na aproximação dos povos a solução para os grandes problemas, quero apenas ser o vector de todos aqueles que acreditam que vale a pena lutar por um mundo melhor.

Fui tirando conclusões das cartas e mensagens que chegavam… Foi bonito. Talvez o que mais me surpreendeu, ainda que fosse previsível, foi o desconforto que causei nas pessoas. Ninguém gosta de ser beliscado ou agitado. E isso aconteceu… ainda que confesso com toda a sinceridade (e ignorância) que não foi propositado. Sem saber, provoquei, proporcionei inquietudes. Porque uma coisa é refugiarmo-nos no “eu não posso fazer nada” …. e outra é “agora já podes, o que é que vais fazer?”…

3. A apresentação do livro

Mesmo antes de partir em missão, o livro foi apresentado ao mundo. Foram centenas de pessoas que fizeram este livro acontecer, entre os que escreveram as cartas, os que as traduziram e por ai fora. O auditório transbordava de gente, mas acima de tudo de boas energias, de empatia, de compaixão de vontade mostrar que nada é mais importante do que a nossa humanidade partilhada. E assim foi em mais de 15 apresentações do livro com auditórios e salas cheias de gente boa e bonita. Foi difícil, mas consegui cumprir a promessa de levar o livro para Mosul. Foram 28 livros que levei às costas, foram os que consegui. Mas mais tarde mandei imprimir mais 500 livros para serem oferecidos no norte do Iraque.

4. A missão em mosul

Eu achei que estava preparado, mas não estava. Nunca estive e espero nunca estar. Ninguém devia estar preparado para isto…

Espero que a história nunca se esqueça de contar em letras bem gordas, aquilo que os nossos irmãos do Iraque estão a passar. Para que não nos esqueçamos, para que aprendamos a lição, porque no fundo, no fundo é culpa de todos nós!

É um pedaço do mundo que se está a afundar, e se não o segurarmos com muita força vai nos arrastar a todos para o abismo.

As pessoas,…. sim, são pessoas, o que elas têm passado…. perderam-se membros, rebentaram-se vidas, destroçaram-se famílias, abandonaram-se crianças…. e testemunharam-se atrocidades que eu teimo em não conseguir compreender…

Ninguém sabe quantos fugiram, ninguém sabe quantos morreram, ninguém sabe quantos vivem em condições desumanas, ninguém sabe quantos ainda lá estão…. Mas sabemos que são nas escalas dos milhões e dos milhares…. e são pessoas, são seres humanos!!

Segurei as lágrimas, porque nos gritos e nos últimos suspiros de vida, vejo uma hipocrisia dum silêncio e duma inacção que matam…. Tudo porque achamos que estas pessoas, não são pessoas…. mas eu vi e vos garanto, são pessoas! E alguns tenho a sorte de agora chamar de amigos…. e admirar a sua força, a sua alma, a sua resiliência, e sentir como transbordam a esperança e amor…

Deixei um pedaço de mim, mas trouxe uma vontade de gritar e de lutar ainda maior por tudo aquilo que tantos ao meu lado, teimam em me relembrar… Todas as vidas são iguais, e o mundo precisa de saber….

Desejo de há muitos anos, conhecer o Iraque, conhecer esta gente, e reforçar a minha alegria de viver…. Porque só assim vejo um sentido de vida, e porque aqui encontro a mais bonita das medicinas….. assim como a melhor parte de mim…

Mosul sangra, como quase nunca se viu, mas a sua gente mostrou-me uma força que poucos têm… Tenho o coração lacerado, dorido, a derreter e cansado….. mas trago comigo uma dose forte de “Obrigado, fizeste um bom trabalho!”…. e só isso rebenta–me as veias de tanta força para continuar….

Talvez nunca possa, talvez nunca saiba, como contar tudo o que vivi….

Talvez a última, ou talvez a sétima de setenta, mas certo é: um orgulho gigante por trabalhar para os Médicos Sem Fronteiras e acima de tudo, tudo e todos que eles representam….

5. 1001 CARTAS DE MOSUL – AS RESPOSTAS

É com imensa alegria que digo que nesta parte da história, não tive mérito nenhum. Iraquianos que se tornaram amigos, viram nesta projecto/livro algo que precisava de ganhar uma vida própria, e assim foi. Com os 500 livros que eu mandei imprimir no Iraque, organizaram um evento incrível, onde num estádio de futebol alguns milhares de pessoas se juntaram para responder ao mundo as “1001 Cartas para Mosul”. E assim se recolheram as respostas e nasceu o “1001 Cartas De Mosul”.

The distribution of the book in Mosul, described by the Agence France Press

Mosul, Iraq: 4th December, 2017.

Iraq: Mosul responds to love letters from around the world The people of Mosul, Iraq’s second largest city, devastated by fighting between pro-government forces and jihadists who had made it their stronghold, responded to hundreds of messages of sympathy received from around the world at a festival organized on Sunday.Civil society activists organized the festival to collect messages from Mosul residents in response to missives collected by a Portuguese doctor in a book entitled “1001 Letters to Mosul”, a nod to the famous collection of oriental tales:“Thousand and one Nights”.In the stadium of the University of Mosul, the inhabitants came in mass to write how much they had been touched by the messages of sympathy sent in Arabic, English and Portuguese while they were escaping the bombs and the fights which lasted nine months.These letters had been written with the initiative of the Portuguese physician Gustavo Carona of Médecins Sans Frontières who was in the city during the hostilities. Five hundred copies of the book containing these messages were distributed during the festival.Security forces were deployed inside the university campus, where the ruins testify to the domination of jihadists, who fled the city on July 10.Folk dances were presented by dancers dressed in traditional clothes characteristic of different communities, Arab, Kurdish or Turkoman, who cohabit in the city.Mosul artists posted paintings and photographs of their city.”I worked with doctor Gustavo when he was in Mosul with MSF, during the battle to free the city,” told AFP Younis Ibrahim, initiator of the event.”We developed a program to collect messages from the world, then Gustavo left Iraq and printed the book.”The letters written by the inhabitants of Mosul especially mention ” love, peace and coexistence between the different components of the city, expressing also the suffering of the inhabitants and their desire to rebuild their city”.”I wrote in my letter that Mosul has been a city of peace, security and brotherhood since it was founded thousands of years ago and still was, despite the wars and disasters that have distressed, “said Oum Mohammed, a 31-year-old woman living in al-Maamoun neighborhood, one of the most affected in the city.

Mas se eu puder pedir que retenham uma mensagem deste livro, é que naquele momento que estiverem a pensar em dar-me uma pancadinha nas costas e dar-me os parabéns, não o façam! Em vez disso, façam algo para tornar este mundo melhor: pensem no Iraque, mas também na Síria, e na Somália, e no Sul do Sudão, e Birmânia, e no Iémen, e na Líbia, na Rep. Centro-Africana, na RDCongo, no Afeganistão, etc, etc, etc… e dêem o primeiro passo no sentido de fazer alguma coisa de positivo por tanta gente que vive abaixo dos limiares da dignidade humana.