Iraque

Fui seduzido emocionalmente pela tragédia da batalha por Mosul. Estava com o coração a tremer com as notícias que via na televisão. Recebi um email onde procuravam médicos como eu. Fui.

Eu já, uma vez, tinha ido nas minhas férias… Foi 8 anos antes. Foi a minha primeira, e foi para Moçambique. Muitas vezes nas minhas “contas” nem conto com esta, porque sinto que fui apenas dar uma ajudinha, e talvez por isso ainda não tenha escrito sobre isso, mas tenho muito bem guardado tudo no meu coração, e na verdade foi onde tudo começou, e foi nas minhas férias e com o meu dinheiro. A vontade era tanta de seguir o meu sonho humanitário que estava disposto a tudo, de que forma fosse, eu só queria era ir… e assim foi…

(…)

A história que vou contar pode doer na alma, mas é uma história de almas bonitas.

O Estado Islâmico ocupou uma enorme parte do norte do Iraque e do nordeste da Síria. Fê-lo de uma forma oportunista aproveitando a fragilidade destes povos, que os leva a aceitar a religião como a única solução para a opressão e ostracização dos seus lideres, e acenando com a palavra de deus para domínio de mentes perdidas, no seu desespero de quem já não tem nada para perder. Fê-lo também través do terror e do medo manietando todas as liberdades e vontades de quem pudesse pôr em causa o seu jugo de poder. Fê-lo torturando, violando, matando e destruindo todos e tudo, com uma maldade, uma frieza, uma violência física e psicológica que é difícil encontrar paralelo na história.

(…)

Haverá certamente opiniões diferentes. O que mais me impressiona numa guerra, não é o que os olhos veem. O que mais me impressiona das 10 guerras que já vivi por dentro, é algo que nunca poderá ser captado por uma fotografia ou analisado por números de mortos, feridos, incapacitados, violações, órfãos, e por aí fora… Esta dor que se sente na pele que eu penso que poderia ser a minha é horrenda, mas não é o que mais me impressiona. Não são os corpos estilhaçados, desmembrados. Não é o cheiro a corpos queimados. Não são os que morrem à fome.

(…)

Regresso de uma missão. Ainda estou a pensar de que mundo é que eu vim, e em que mundo é que eu estou. Ainda sinto o cheiro a sangue, a dor, a morte e a sofrimento. Ainda ouço os gritos. Ainda sinto uma injustiça tremenda pelo que o meu coração carrega do Iraque, e o que os meus olhos contemplam na minha querida cidade do Porto.

(…)

Este processo da escrita, é tudo menos um mar de rosas… Parece que cada vez mais me custa mergulhar nas minhas memórias, e não o sei fazer sem ficar profundamente emotivo. Porque aquilo que carrego no peito, às vezes parece demasiado pesado para ser digerido… Quando tento perceber porque é que quero continuar a escrever, acho que o que me domina é o compromisso. É a promessa que fiz a mim mesmo, a promessa que fiz ao melhor de mim, a promessa que me fiz em frente dos que me fazem querer escrever…. “tu vais contar o que viste! É o mínimo que podes fazer por esta gente! Esforça-te para contares o que viste!”…. e aqui estou eu, a tentar cumprir essa promessa.

(…)

Saltitamos entre o humano e o desumano. Entre o corpo e a pessoa. Entre o ser vivo e a alma. Precisamos de ser desumanos para fazer esta profissão sem tremer, precisamos de olhar para o corpo como uma máquina, um desafio, com uma frieza robótica… Se deixamos entrar as emoções e vemos o humano, e vemos a pessoa, vai ser difícil executar tarefas num banho de lágrimas… Porque é isso, que sinto quando deixo entrar as emoções, um choro compulsivo que se auto-alimenta, que ganha vida própria. E eu não posso deixar entrar…

(…)

Pela segunda vez na minha vida estive cara-a-cara com o Estado Islâmico. Mete medo, é assustador. Muitos arrepios na espinha.  A primeira vez foi na Síria em finais de 2013 que tive o desprazer de me cruzar com este grupo de pura maldade. Cruzei-me com alguns dos seus elementos no hospital onde trabalhei, mas foi acima de tudo na reacção de medo e petrificação que vi nos rostos do povo sírio, que me apercebi do espectro infinito de terror e sofrimento que fez construir a minha imagem sobre este grupo.

(…)

No dia em que entrei pela primeira vez no bloco operatório tive que impor a minha opinião de uma forma que não é frequente: “É da perna. Vocês vão ter que lhe cortar a perna.”, disse eu com firmeza. Nem tivemos tempo para perceber bem o que tinha acontecido, um homem grande e gordo na ordem dos 30 anos, vindo directamente das linhas da frente em Mosul a sangrar por vários sítios, com o corpo todo cheio de estilhaços e com a coxa e a perna esquerda desfeitas, com várias fracturas e vários esfacelos sangrantes. O homem foi carregado pelo bloco operatório adentro em urgência máxima.

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Eu já, uma vez, tinha ido nas minhas férias… Foi 8 anos antes. Foi a minha primeira, e foi para Moçambique. Muitas vezes nas minhas “contas” nem conto com esta, porque sinto que fui apenas dar uma ajudinha, e talvez por isso ainda não tenha escrito sobre isso, mas tenho muito bem guardado tudo no meu coração, e na verdade foi onde tudo começou, e foi nas minhas férias e com o meu dinheiro. A vontade era tanta de seguir o meu sonho humanitário que estava disposto a tudo, de que forma fosse, eu só queria era ir… e assim foi…

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Este processo da escrita, é tudo menos um mar de rosas… Parece que cada vez mais me custa mergulhar nas minhas memórias, e não o sei fazer sem ficar profundamente emotivo. Porque aquilo que carrego no peito, às vezes parece demasiado pesado para ser digerido… Quando tento perceber porque é que quero continuar a escrever, acho que o que me domina é o compromisso. É a promessa que fiz a mim mesmo, a promessa que fiz ao melhor de mim, a promessa que me fiz em frente dos que me fazem querer escrever…. “tu vais contar o que viste! É o mínimo que podes fazer por esta gente! Esforça-te para contares o que viste!”…. e aqui estou eu, a tentar cumprir essa promessa.

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A história que vou contar pode doer na alma, mas é uma história de almas bonitas.

O Estado Islâmico ocupou uma enorme parte do norte do Iraque e do nordeste da Síria. Fê-lo de uma forma oportunista aproveitando a fragilidade destes povos, que os leva a aceitar a religião como a única solução para a opressão e ostracização dos seus lideres, e acenando com a palavra de deus para domínio de mentes perdidas, no seu desespero de quem já não tem nada para perder. Fê-lo também través do terror e do medo manietando todas as liberdades e vontades de quem pudesse pôr em causa o seu jugo de poder. Fê-lo torturando, violando, matando e destruindo todos e tudo, com uma maldade, uma frieza, uma violência física e psicológica que é difícil encontrar paralelo na história.

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Saltitamos entre o humano e o desumano. Entre o corpo e a pessoa. Entre o ser vivo e a alma. Precisamos de ser desumanos para fazer esta profissão sem tremer, precisamos de olhar para o corpo como uma máquina, um desafio, com uma frieza robótica… Se deixamos entrar as emoções e vemos o humano, e vemos a pessoa, vai ser difícil executar tarefas num banho de lágrimas… Porque é isso, que sinto quando deixo entrar as emoções, um choro compulsivo que se auto-alimenta, que ganha vida própria. E eu não posso deixar entrar…

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Haverá certamente opiniões diferentes. O que mais me impressiona numa guerra, não é o que os olhos veem. O que mais me impressiona das 10 guerras que já vivi por dentro, é algo que nunca poderá ser captado por uma fotografia ou analisado por números de mortos, feridos, incapacitados, violações, órfãos, e por aí fora… Esta dor que se sente na pele que eu penso que poderia ser a minha é horrenda, mas não é o que mais me impressiona. Não são os corpos estilhaçados, desmembrados. Não é o cheiro a corpos queimados. Não são os que morrem à fome.

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Pela segunda vez na minha vida estive cara-a-cara com o Estado Islâmico. Mete medo, é assustador. Muitos arrepios na espinha.  A primeira vez foi na Síria em finais de 2013 que tive o desprazer de me cruzar com este grupo de pura maldade. Cruzei-me com alguns dos seus elementos no hospital onde trabalhei, mas foi acima de tudo na reacção de medo e petrificação que vi nos rostos do povo sírio, que me apercebi do espectro infinito de terror e sofrimento que fez construir a minha imagem sobre este grupo.

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Regresso de uma missão. Ainda estou a pensar de que mundo é que eu vim, e em que mundo é que eu estou. Ainda sinto o cheiro a sangue, a dor, a morte e a sofrimento. Ainda ouço os gritos. Ainda sinto uma injustiça tremenda pelo que o meu coração carrega do Iraque, e o que os meus olhos contemplam na minha querida cidade do Porto.

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No dia em que entrei pela primeira vez no bloco operatório tive que impor a minha opinião de uma forma que não é frequente: “É da perna. Vocês vão ter que lhe cortar a perna.”, disse eu com firmeza. Nem tivemos tempo para perceber bem o que tinha acontecido, um homem grande e gordo na ordem dos 30 anos, vindo directamente das linhas da frente em Mosul a sangrar por vários sítios, com o corpo todo cheio de estilhaços e com a coxa e a perna esquerda desfeitas, com várias fracturas e vários esfacelos sangrantes. O homem foi carregado pelo bloco operatório adentro em urgência máxima.

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