Regresso aos Médicos Sem Fronteiras, regresso à região dos grandes lagos no leste de África. Já tinha planeado com os MSF fazer 3 missões de seguida, mas com intervalos de descanso no meu Porto seguro. Primeiro Burundi, depois Iémen, e depois Faixa de Gaza. Foi a primeira vez que concertei um pacote de missões à partida. Parece que é neste momento que me sinto um verdadeiro profissional humanitário. É interessante para mim ler no email as 3 propostas e com isso ficar a sonhar com as 3 missões, mas ao mesmo tempo retira exclusividade ao meu coração que estava habituado a ter um sonho de cada vez. O Iémen estava a bater forte no meu coração já há uns anos, pelos encantos que o país tem e pelas necessidades humanitárias indizíveis. A Palestina e a Faixa de Gaza em particular, era como se fosse um sonho de criança. Foi provavelmente a primeira causa pela qual me interessei desde que me lembro de pensar no mundo além fronteiras. Deveria estar no fim da adolescência, quando pegava no jornal Público do meu pai, para ler com interesse sobre a questão palestiniana. Lembro-me de um dia ler uma reportagem bem detalhada da viagem de um fotojornalista israelita que trazia relatos do Palestina, mostrando o quão injusta e difícil é a vida dos palestinianos. E com todas estas memórias, curiosidades e vontades de descobrir o mundo e ajudar no que puder, o Burundi parecia-me menos interessante ou menos entusiasmante. É sempre difícil comparar pobreza, sofrimento e desgraças, e o verdadeiro pensamento humanitário não pode ter preferência de causas, mas sim proporcionalidade da acção perante as necessidades de ajuda. Mas, mesmo sabendo que o meu empenho será sempre o mesmo em cada missão, parece-me normal que alguns locais me ponham o coração a bater de forma diferente. E o Burundi parecia ser apenas o aquecimento para as missões que vinham a seguir.
Bu-jum-bu-ra! Não me perguntem porquê, mas Bujumbura faz parte de um restrito grupo de nomes de capitais que me parecem nomes de mulheres por quem eu gostava de me apaixonar… as concorrentes são Ljubliana, e Addis Abeba que por vezes ganha espaço no meu coração por querer dizer a “Nova Flor”, e porque morro de amores pela Etiópia. Normalmente gosto mais das profundidades de África do que viver numa capital, porque prefiro a ruralidade, e a simplicidade, e porque é aí onde se encontram as necessidades humanitárias mais óbvias, mas Bujumbura atraia-me, à partida.
Era a minha décima missão. Os números redondos fazem-nos pensar. Quase 10 anos depois. 10 missões. Quem era aquele rapaz de 28 anos que foi para o Congo, a chorar baba e ranho pelos cantos dos corredores do aeroporto de Bruxelas, e quem sou eu agora? Já não choro na partida, já não vou num turbilhão de emoções numa mistura de entusiasmo, medo e saudades. Tenho saudades de sentir as coisas com tanta força, mas as primeiras vezes não voltam, e as emoções virgens também não. Por vezes penso que aprendi tudo e vi tudo na minha 1a missão no Congo, e as restantes foram apenas a consolidação dessa aprendizagem. Tudo o que fazemos uma vez na vida é quase como se não contasse. O que nos define é a persistência, a consistência, a insistência e a coerência. E aqui estou na décima. Já não tenho que segurar as lágrimas até virar as costas aos meus, mas continuo a acreditar com paixão que este é o caminho. Seja em que parte do planeta for, fazer parte da solução, para que não seja parte do problema. Sou um cidadão do mundo, e acredito com muita força numa justiça social planetária e morro de orgulho por ser apenas um peão numa máquina gigante, que oferece cuidados de saúde onde eles são mais precisos. Salvamos vidas onde milhares de pessoas morrem por causas facilmente evitáveis.

Cachecol do FCPorto à vista, pela décima vez, para que saibam de onde eu venho, e para eu sentir os meus e o meu mundo, mais próximos, mas ainda sabendo que lá vou passar o Natal e vai doer o coração pelas saudades e por saber que estou a magoar as pessoas de quem mais gosto por ser tão obstinado com os meus sonhos.
Vou trabalhar para um centro de Trauma em Bujumbura, querendo isto dizer que tratam de todo o tipo de traumatizados: quedas, acidentes de trabalho, atropelamentos, armas brancas, armas de fogo, acidentes de viação… Faço aqui um parêntesis para falar sobre a loucura que é o fenómeno das bicicletas nesta região do planeta. O terreno é muito acidentado com subidas e descidas muito ingremes, e quem tem uma bicicleta não é para diminuir as emissões de CO2, não é para fazer exercício ou e não é para ter um ar citadino evoluído. Uma bicicleta é um bem muito valioso (quem tem uma está muito acima da média da população) e que serve para transporte de mercadorias: bananas, lenha, carvão, e tudo mais que possam imaginar. Uma bicicleta, que tem aquele design clássico de pneu grande e fino, sem suspensão e sem mudanças, pode acarretar até 70 ou 80 quilos de carga para além do ciclista. Também há quem faça dinheiro com a bicicleta como táxi, tendo o apoio atrás uma almofada onde o passageiro se senta. Mas o que é fascinante e aterrorizante ao mesmo tempo é o que vemos nas estradas. Nas descidas é alucinante a velocidade que atingem, e tendo em conta que aqueles travões não parecem ser de fiabilidade garantida, a sensação que dá, é de morte iminente… aqui também salta á tona o pensar do médico que já viu demasiadas vezes no hospital os casos que correm mal… E as subidas? Bem… em primeira análise, alguns destes homens que parecem muito fininhos quando vão a pedalar tornam-se poderosos trepadores de montanhas com a bicicleta extremamente pesada, mas se formos olhando com atenção é impossível deixar passar desapercebido um verdadeiro espetáculo circense, quando nas subidas, eles arranjam forma de se agarrar à parte de trás de camiões ou camionetas com uma mão, e com a outra no guiador, para com isto conquistarem uma subida sem esforço. É de loucos o risco que correm, e os acidentes são aos pontapés. Eu já tinha apreciado este fenómeno no Congo, e no Ruanda, para parece que os Burundeses são especialmente famosos por estas subidas radiacais. É certo que vou ver muitos destes artistas no hospital. Fim de parêntesis.
O que me esperava também nesta próxima missão eram muitos queimados, em particular crianças. É um enorme flagelo em África, como já o descrevi tantas vezes. Em Portugal nunca trabalhei muito directamente com este tipo de doentes, e pese embora já tenha lidado com muitos queimados em missões, sinto sempre necessidade em rever alguns conhecimentos, em particular sobre crianças, e com o acrescento de visualizar as condições e as limitações que terei na minha futura casa. E assim foi a minha viagem de avião enquanto sentia energia, a ler relatórios dos médicos que lá estiveram e a ler protocolos e artigos sobre queimados. Depois só me lembro de estar num sono profundo num banco no meio do aeroporto de Addis Abeba, e acordar com alguma vergonha alheia por me estar a babar enquanto dormia, e por estar todo estremunhado com ar de quem não sabe em que planeta está. Fico sempre a pensar o quão fui feliz nesta cidade, neste país e a estranha sensação de quase me sentir em casa neste aeroporto, por já aqui ter passado tantas vezes.
No meu voo final para Bujumbura, já quase 24 horas depois de ter saído de casa, , regresso ao mundo dos vivos, e começo a olhar á minha volta. Presumo que os pretos que aqui vejo sejam Burundeses, e observo-os com a curiosidade de quem quer conhecer o mundo que o espera, e os 2 ou 3 brancos que vão no avião, assumo que trabalham para organizações internacionais e espreito por sinais que me possam fazer crer se serão meus companheiros, e por acaso uma rapariga sueca, era uma médica ortopedista que viria a trabalhar comigo. A chegada a Bujumbura é incrível. Aqui sim, o coração começa a bater. Que lindo. No meio das montanhas, vê-se o lago Tanganika até perder de vista. Tinham passado 2 ou 3 meses, desde que tinha saído de Goma, no Congo, que é mesmo ali ao lado, ou seja, parecia que estava a voltar a casa. O aeroporto de Bujumbura é como brinquedo, pequeno, simples, todo aberto porque o clima é maravilhoso, e tem aqueles ares de tropicalidade que nos fazem sentir logo com outra energia.

É sempre bom ter alguém à nossa espera no aeroporto, para nos levar a casa. Absorver tudo o que me rodeia com a curiosidade efervescente de todas as primeiras vezes. A casa é grande e tem excelentes condições. Nada de luxos, mas já fiquei em pensões ou hostéis bem piores… também não é difícil, porque já dormi em grandes espeluncas. Mal posso, arranco para o hospital. Reuniões e mais reuniões sobre segurança, cultura, política, estratégia médica, etc… até que finalmente chega à parte que mais me interessa: os meus colegas que me vão fazer a passagem de testemunho. Havia dois anestesistas, um mais virado para o bloco operatório, e outro mais virado para o serviço de urgência, mas por sorte ou por azar, eu ia substitui-los aos dois, pelos menos durante umas semanas. Daí que tinha muita informação a assimilar, para que pudesse dar continuidade ao trabalho feito, o melhor possível. Arregaço as mangas e começa a missão.