12. Deixei um Pedaço de Mim

Para mim a definição de missão, é o que sobra do trabalho. É algo que se sente. É algo que nos envolve a 360º, e 24 horas por dia. É sentir que não contamos as horas que trabalhos, nem sabemos se e quanto vamos ganhar. É sentir que o nosso contracto é com as nossas emoções, com as nossas convicções, com o nosso coração, connosco mesmo em toda a sua plenitude. Há várias circunstâncias que nos fazem sentir em missão. A primeira, e de longe a mais importante, é a magnitude do desafio que é proporcional à dimensão da catástrofe que nos rodeia, e a batalha por Mosul foi das páginas de sofrimento colectivo mais cruéis da nossa história contemporânea, e como tal a premência em ajudar a mitigar as lágrimas de sangue que nos invadiam todos os dias tornam-se uma evidência moral. Depois, temos a distância física e emocional do nosso mundo que nos faz imergir na nossa nova casa, juntamente com o facto de vivermos e trabalharmos com as mesmas pessoas, e sentirmos um país e o seu povo, que até então nos era desconhecido, com uma enorme proximidade, e admiração recíproca ficando contagiados com a sua força interior, a sua cultura, os seus costumes, a sua língua, religião, e forma de ser… e como todos nós somos feitos de afectos, nós passamos a fazer parte deste canto do planeta, e este faz parte de nós. A minha missão estava a chegar ao fim, e por coincidência também o ramadão.

Viver o ramadão bem por dentro foi para mim uma experiência imersiva e profundamente enriquecedora. Havia a dúvida no ar, de como iria ou não interferir o ramadão na dinâmica deste cruel conflito. O ramadão é tido como um período de reflexão, introspecção, consolidação dos pilares morais e valores da religião, confraternização com a família, e como prova inabalável de fé e do compromisso é também um período de sacrifício, que inibe então todos os crentes de Allah e do seu profeta Maomé, de comer e beber durante a luz do dia, durante as 4 fases da lua que dura este périplo pela alma dos muçulmanos. Por um lado, seria de esperar uma acalmia tendo em conta que temos muçulmanos em ambos os lados das barricadas, por outro lado o fanatismo do Estado Islâmico pode interpretar o ser um “bom muçulmano” com um reforçar da sua loucura materializada à bomba, justificando todas as barbáries com as suas interpretações desumanizadas da religião. A verdade é que a guerra em Mosul, continuou a ferro e fogo diariamente, sem aparente interferência de parte a parte do simbolismo do ramadão. E foi já quase no final do ramadão que o Estado Islâmico decidiu implodir o minarete da mesquita de Al-Nuri. A mesquita e o minarete da mesquita Al-Nuri eram (não sei se continuarão a ser) o símbolo de Mosul, com os seus 45 metros de altura era visível de toda a cidade, e era carinhosamente apelidada como “a corcunda”, por ter uma inclinação bastante proeminente. O Estado Islâmico, ao sentir que a derrota parecia ser uma inevitabilidade, por pura maldade destruiu o símbolo da cidade, onde curiosamente 3 anos antes, através do seu líder Al Bagdadhi, havia declarado o Califado que iria incluir todos os países muçulmanos, e em alguns delírios maiores, até a península Ibérica, por já ter sido muçulmana. No dia após o destruir do minarete da mesquita Al-Nuri, eu vi várias lágrimas nos olhos dos meus companheiros iraquianos. As pedras não valem vidas, mas contam estórias e a história daquele povo, e é revoltante e angustiante sentir que por fanatismo paranoide se destrói o símbolo da cidade tão querido por todos, como se se destruísse a torre dos Clérigos no Porto, ou o Castelo de São Jorge em Lisboa, ou tantos outros monumentos que transportam o coração da cidade e de quem lá vive. Eu vi lágrimas silenciosas, de desespero por tudo o que já se perdeu, pelos milhares de vidas perdidas ou a sofrer, e por terem destruído o coração da sua cidade. Foi um dia muito triste, e foram só pedras que caíram…

Por falar em dias tristes… Eu estava em Mosul, em Junho de 2017, quando ocorreu a tragédia dos incêndios de Pedrogrão Grande. Por estar tão longe, e tão absorvido noutra realidade, vi certamente, menos notícias que a maioria dos portugueses, e ainda assim fiquei com o coração dilacerado. Morreram 66 pessoas. Morreram de uma forma cruel, cercadas pelo fogo, desorientadas a tentar escapar o mar de chamas que as rodeava, e rodeou até serem consumidas pelo impiedoso incêndio. Claro que as vidas são tudo o que conta, mas não esquecemos dos que ficaram sem nada, desde os pertences ao tecto que nos traz a dignidade para sermos pessoas. Muitos homens feitos choraram pela tragédia de alguns, que foi a dor de todos nós. Esta tragédia correu mundo, foi notícia em todos os canais de notícias pelo mundo fora, e o Iraque não foi excepção. No dia a seguir, foram vários dos meus companheiros de trabalho iraquianos, que se dirigiram a mim a dizer “eu vi o que aconteceu em Portugal, lamento imenso… os meus sentimentos.”… confesso que estas palavras despertaram em mim sentimentos muito contraditórios. Por um lado muito triste com o aconteceu em Pedrogrão, por outro lado acalorado com palavras tão carinhosas de pessoas que eu considerava amigas, e na mistura disto tudo uma contradição e um contraste que me corroíam por dentro em pensamentos estranhos, enquanto reflectia para mim: “aqui, em Mosul, a escassos quilómetros de onde eu estou, está acontecer uma tragédia da magnitude de Pedrogrão Grande, a cada 5 minutos, há 9 meses consecutivos, e apesar do mundo inteiro estar a fingir que isto não está a acontecer, esta gente ainda tem uma palavra de carinho para comigo, por ser conterrâneo de uma tristeza infinitamente menor do que aquela que caiu em cima deles, das suas famílias, e amigos, e com as suas cidades arrasadas pela guerra…com milhões de refugiados e deslocados a lutar pela sobrevivência em tendas de plástico e a ser desprezados por todos nós… que mundo irónico este, que hipócritas que nós somos que só percebemos e respeitamos o sofrimento humano, quando este nos acontece a nós ou aos nossos…”. Sofri e sofro, com estes contrastes e estas contradições.

Chegou o dia de celebrar o fim do ramadão, o Eid (Eid-al-Fitr é a designação completa). As festividades estavam a ser montadas e a minha curiosidade também. Foi no recinto do hospital que se preparou o que viria a acontecer. Com o abrandar do calor tórrido, a noite faz entrar temperaturas mais amenas para se conseguir festejar. Panelões de comida, arroz e frango, e claro com o pão árabe (nann) que nunca pode falhar. Bebidas, muitas e variadas, mas nem uma gota de álcool. É sempre estranho festejar o que quer que seja, numa política de zero-álcool, mas assim é. Mesas corridas, bancos corridos, muita gente de pé, e uma mesa especial cheia de doces. Mas vamos ao que mais interessa: A festa. Não me perguntem porquê, mas a forma de trazer música com os decibéis suficientemente altos, para que dê para dançar, foi trazer uma ambulância para o meio da festa, e ligar o rádio da ambulância. As únicas mulheres presentes, eram as estrangeiras. Timidamente, começa um dos iraquianos e depois outro a ensaiar os primeiros passos de dança. Devíamos ser uns 30 ou 40 no total. A dança começa a desenhar um semi-círculo ao lado da ambulância. Sentem-se emoções fortes no ar. Este momento de espiritualidade colectiva está imiscuído com o maior sofrimento deste povo de que há memória. Há um iraquiano que se lança numa performance individual… É uma espécie de um ritual que envolve um lenço bem típico dos árabes e do médio-oriente. Deixa cair o lenço no centro das atenções. Dança à volta do lenço. Com jogo de pernas, em passo de dança baixa-se para apanhar o lenço, fazendo-o depois rodopiar à volta da cabeça e do pescoço, para depois o deixar cair novamente diante dos olhos atentos do público que está a sentir o momento. Vem outro pegar no lenço para dar continuidade às celebrações. O calor fá-lo transpirar gotas de emoção de um povo que nunca terá tempo para chorar tudo o que devia. Braços cruzados e flectem-se as pernas. O lenço cai, o lenço volta. No meio do hospital que viu tanta dor, tantas lágrimas e tanto sangue. Por mais que eu lá tenha estado lado-a-lado com aquele povo incrível, eu nunca poderei dizer que sei ou que percebo o que eles passaram… O sentir colectivo daquele momento faz aproximar as pessoas que deixam os olhos e os ouvidos ser a porta de entrada para o coração… Apercebo-me que neste grupo de gente que está assistir se juntam alguns doentes que conseguem deambular. Talvez não devessem estar ali, mas seguram os drenos e aguentam as dores porque querem sentir e celebrar aquele momento… Merecem mais do que ninguém… Se o Natal dos hospitais é sempre um momento especial, imaginem celebrar o fim do ramadão no meio de uma guerra… A intensidade do que se sente no ar é inimaginável.

Adorava compreender a música e perceber o que dizem, mas a ignorância permite-me viajar num imaginário mais puro no sentir, que substitui a incompreensão das palavras. O lenço já rodou várias danças a solo, até que em jogos de quase sedução ou desafio, se começam a acoplar aos pares, homens, sempre homens, que depois se vão unindo como se fossem células, a querer construir um corpo. Colados, lado a lado, braços entrelaçados pelas costas, dançam como se fossem um, à volta do lenço. Não sei se é a música que acelera ou se é o meu coração, mas está mais intenso e parece-me mais rápido. A música que sai de uma ambulância, no meio de um hospital, embala as almas de vitimas e cuidadores que rezam para que o ódio se transforme em amor. Estou arrepiado, com pele de galinha, hipnotizado pelo que ouço, pelo que vejo e pelo que sinto. A escassos quilómetros, o horror da humanidade, ali à minha frente a esperança do seu fim. Foram poucas as noites da minha vida, em que senti tanto e com tanta força.

Começo a preparar o meu fim. Eu tinha planeado entregar o livro “1001 Cartas para Mosul” apenas no final da minha missão. Tinha medo que o efeito do livro pudesse retirar o meu foco da minha actuação enquanto médico. Não queria ficar conhecido como o médico que trouxe o livro, e como tal guardei até mesmo ao final para deixar ficar os 28 livros que eu trouxe às costas. Um dos enfermeiros que trabalhava comigo, o Younis, que se tornou meu amigo e veio a ser a cara da continuidade deste projecto, viu nas minhas redes sociais o livro, e perguntou-me sobre isso. Eu tentei desconversar e disse que no final ele mesmo ficaria o portador dessa surpresa. E assim foi. No dia em que me vim embora fui ao hospital ter com ele, deixei-lhe os livros todos assinados por mim, e contei-lhe um pouco da história. Pedi-lhe que os fizesse chegar a quem ele achasse que fazia sentido na cidade de Mosul. Nunca mais me vou esquecer daquele brilho nos olhos do Younis, e de mais dois enfermeiros que ouviam a conversa e a quem eu também oferecia o livro… “isto foi escrito em Portugal?”… “para nós?”… “traduzido para Árabe?”… perguntavam-me eles de olhos húmidos e com os corações a brilhar. Eu detesto despedidas, e no meio desta intensidade emocional, só me apetece ir chorar para o meu canto… Distribuo uns abraços e vou-me embora…

Dentro do carro que me leva a Erbil, é impossível não ser dominado pelo que deixo para trás… Imensamente triste por ter absorvido uma das páginas mais sangrentas da nossa história, mas feliz por me sentir parte do solução e não do problema. Sinto-me orgulhoso por ter dado tudo o que tinha. Não terei feito tudo bem, há sempre muita coisa a melhorar, mas esforcei-me por ser útil, no meio de uma equipa maravilhosa, e agradeço a inspiração por ter conhecido o lado mais bonito do Iraque, as pessoas que decidem lutar pelo seu país salvando as vidas que lhes aparecem à frente, seja de quem for. Conheci gente bonita, e isso torna-me mais rico. Faz-me querer ser melhor, e viver inspirado não tem preço.

Passo por inúmeros campos de deslocados de tendas de plástico em filas até perder de vista, até chegar a Erbil, a capital do Kurdistão Iraquiano. Os curdos bateram-se como ninguém, e foram cruciais ao estancar os avanços do Estado Islâmico ao travar ferozes batalhas com as suas forças especiais, os Peshmergas, que têm inclusive mulheres combates muito duras, e assim conseguiram que a sua capital não visse a guerra. Erbil é uma cidade bem moderna e desenvolvida. Os curdos masculinos citadinos, são muito cuidados na sua imagem. Cortes de cabelo da moda com grandes poupas, barbas feitas com design artístico e umas fatiotas muito janotas, numa mistura de estilista italiano, homem de negócios de Wall Street, e um hipster londrino. Já elas também não ficam atrás no campo da chamada de atenção. Túnicas com muita cor que já se desenham em forma de vestidos, com linhas que fazem realçar a silhueta e as curvas do corpo, maquilhagem e penteados exuberantes, caminham com a confiança de quem está a espalhar o seu charme. Isto foi o que os meus olhos viram ao caminhar algumas horas por alguns pontos mais conhecidos da cidade que termina inevitavelmente na Citadela. A Citadela é das mais antigas provas de civilização do mundo, tendo vestígios de que já é habitada há 7 mil anos. Salienta-se em altura como se fosse um sinal da pele, com formato circular, e com todo seu diâmetro murado, esconde lá dentro um património histórico da Unesco, que nos faz perceber bem, o porquê da Mesopotâmia ser o berço das civilizações.

Passados uns dias, já chegado a Portugal, no dia 9 de Julho de 2017, a batalha por Mosul é dada como terminada. Claro que ainda sobram alguns pontos de resistência do Estado Islâmico algures escondidos entre o norte do Iraque e o Noroeste da Síria, mas a batalha mais sangrenta de que há memória, chegou ao fim. Podíamos dizer que havia motivos para festejar, mas acho difícil viver o sentimento de celebração com o rasto de dor que este conflito deixou… Dezenas de milhares de mortes, uma boa parte da cidade arrasada e inabitável até hoje, centenas de milhares de refugiados cujas histórias, todos conhecemos, e milhões de deslocados, esquecidos pela maioria que durante muito tempo habitam em condições desumanas, expostos aos extremos das temperaturas, à fome, à falta de dignidade humana e a todas as doenças que a extrema pobreza lhes traz.

Chegado a Portugal, lutei muito para que esta realidade e tantas outras não caíssem na nossa indiferença. Apresentei o livro mais de 15 vezes de norte a sul do país. Cheguei mesmo a apresenta-lo no Rio de Janeiro. Falar deste livro, tem pouco ou nada a ver com literatura, mas muito com humanidade, e com a luta inquieta que todos devíamos ter pela cidadania global, pelo alargar da extensão da nossa empatia, e pela humanização de tantas pessoas que não deixamos que entrem no nosso coração. Este livro fez magia. Abriu um canal de comunicação que parecia ser impossível de existir.

O Younis deu-me muito trabalho. Entusiasta, mexido e bem relacionado. Envolveu família, amigos, e conseguiu chegar a pessoas importantes de Mosul, e fez-nos sonhar que o projecto poderia chegar bem mais longe. Dei por mim, e estava a estudar de que maneira é que poderia enviar o meu dinheiro para o Iraque, já que livros não consegui que alguma transportadora o fizesse para aquele local do planeta. Devem ter achado que eu era uma terrorista na Western Union, ao enviar uns milhares de euros para o Iraque, pois ninguém imaginaria que era para que se imprimissem 500 livros. Os primeiros 100 foram para a feira do livro em Mosul, que reabria as portas à cultura após 3 anos de escuridão. Os restantes 400 foram para um evento que o Younis organizou num estádio de futebol, com milhares de pessoas a assistir, e que deu origem ao livro das respostas, o “1001 Cartas de Mosul”, e assim estava completo o círculo da comunicação, tudo isto méritos do Younis, pois eu já pouco ou nada fiz para que a magia da esperança por tempos melhores se espalhasse como um rastilho no norte do Iraque, e que foi até noticiada pelo Agence France Press, para que todo o mundo visse, que para que se façam coisas bonitas só precisamos do verdadeiro sentir, de algum trabalho, e de um pouco de imaginação.

A todos os níveis deixei um pedaço de mim, naquela zona do planeta. Nunca os esquecerei, e sabe-me bem que assim o seja.

Deixei um pedaço de mim.

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