Nunca um tema em discussão me foi tão próximo e nunca tive tantas dúvidas e dificuldades em saber o que dizer. Estou há 1 mês a trabalhar directamente com doentes Covid-19, sou médico Intensivista no Hospital de Matosinhos e vou tendo também uma perspectiva global dos Cuidados Intensivos do grande Porto, nomeadamente do Hosp. de São João que me formou. No entanto não consigo despir-me de 10 anos de experiência de Medicina Humanitária quase sempre em cenário de guerra, a trabalhar nalgumas da maiores catástrofes dos últimos tempos, e como tal, tentarei transcrever as diferentes fases que passei neste mês, em termos de gestão de emoções.
1) Revolta e Injustiça – Ver que o mundo estava prestes a “parar” foi para mim extremamente doloroso, pois nunca “parou” pela guerra da Síria ou do Congo, ou do Iémen, e nunca “parou” pelos milhões de crianças que morrem à fome e de doenças facilmente tratáveis. A revolta que causou em mim foi tão grande que prometi a mim mesmo que depois de dar o máximo, para ajudar os meus e o meu país, nunca mais voltarei a exercer medicina em Portugal, pois parece-me demasiado injusto esta desproporção de atenções. Sem querer ser teimoso intelectualmente sempre acreditei que a cura irá matar mais que a doença (já em 2020 a fome aumentará de 135 para 265 milhões de pessoas), mas espero do fundo do coração estar errado.
2) A fase emocional – quando me apercebi que a minha irmã, tinha medo que eu me aproximasse dos meus pais porque no início de Março passei em vários aeroportos, caí em lágrimas, pois sabia que ia estar cara a cara com os doentes Covid-19 mais graves durante muitos meses. E fugir a esta responsabilidade não seria sequer uma opção. Não preciso de perguntar a ninguém à minha volta no hospital, porque sei que todos nós já choramos. Profissionais com muita experiência a lidar com a vida e com a morte sofreram o que nunca imaginaram. A ideia de ser um de nós, deitado numa das camas dos Cuidados Intensivos, passou a ter uma forma muito real e assustadora, assim como a possibilidade de termos que decidir, quem vamos tratar e quem vamos deixar morrer, é destructiva. Alguns separam-se dos filhos pequenos para poder trabalhar com medo de “matar” alguém da família, outros continuam a trabalhar bem de perto com a mesma doença que atirou para os Cuidados Intensivos um dos seus familiares que está com a vida por um fio. É muito duro gerir estas emoções.
3) Conviver com a doença – Mal arrancamos para esta batalha tão dura, cerca de um terço da minha equipa médica testou positivo e foi para casa. A dureza de trabalhar com os fatos, as máscaras, e com a visão embaciada pelas viseiras torna tudo muito mais difícil. Separar o circuito (Covid, Não-Covid) da urgência e enfermaria, e duplicar os cuidados intensivos é extremamente exigente do ponto de vista físico e emocional. O cansaço acumula-se. A doença em si é muito difícil de compreender, principalmente nos que infelizmente nos chegam aos Cuidados Intensivos. Resumindo um mundo de saberes científicos: ninguém sabe como se trata, só sabemos que demora muito tempo. Já acordei à noite com ansiedade a pensar nas estratégias de ventilação. Percebemos também que a doença que “só mata os velhinhos” já atirou para os Cuidados Intensivos no meu hospital doentes com 29 e 33 anos. Reduzir a conversa a uma contagem de ventiladores é a mais pura das estupidezes. Os Cuidados Intensivos fazem-se de recursos humanos de qualidade, só isso é que salva vidas. E na minha opinião, convicto que não é o tempo para lutas sindicais, tornou-se ainda mais óbvio que os enfermeiros são preciosos e mereciam muito mais respeito da sociedade. Quando não estou no hospital, estou em casa a trabalhar: a estudar, a ler novos protocolos que saem ao minuto, responder a infinitos emails e a ensinar outros médicos que têm sido preciosos a reforçar à pressa as equipas dos Cuidados Intensivos. Tenho visto em todos os profissionais de saúde, uma enorme coragem, uma solidariedade sem precedentes e uma coesão entre as equipas que é profundamente inspiradora. O que nos rebenta o coração, é ver os doentes que morrem sozinhos nos hospitais, onde com o preço das nossas lágrimas colocamos a família por vídeo-chamada para um adeus final.
4) Consequência sociais – cada dia que acordo e saio de casa para trabalhar sinto que sou um felizardo. A cada dia que passa me irrita mais a expressão “linha da frente”, quando o colapso da economia vai causar níveis de desemprego e fome sem precedentes que matará muita gente, ainda que de uma forma silenciosa e sem ninguém para os contar. Assim como ninguém sabe quantos já morreram por consultas e cirurgias adiadas, e muito mais ainda pelo empobrecimento das ONGs que protegem os mais frágeis em Portugal e no mundo. É difícil dizer quantos desempregados valem uma vida, mas o sofrimento humano extremo de muitos milhares em Portugal e muitos milhões pelo mundo, tem que entrar na equação das nossas decisões.
5) E agora o que fazer? – Acredito que a discussão tem que ser multidisciplinar, e a medicina e a ciência apesar de serem uma das pedras basilares da conversa, não podem ter a arrogância de pensar que a dominam. A economia também são vidas, assim como, com a democracia de opinião possível, é preciso acrescentar à conversa a filosofia dos comportamentos de como a sociedade quer viver, enquanto espera por uma vacina que ninguém sabe se vem, nem quando vem. Eu não gostaria que as pessoas da minha família em idades de maior risco, ficassem em casa sem viver para preservar a sua vida. Eu não gostaria de viver sem cultura que nos alimenta a alma e a humanidade que temos em comum, eu não gostaria de viver sem afectos que me fazem a pessoa que sou hoje. Na minha humilde opinião, viver com medo de morrer, não é viver. Acredito também que o grande sofrimento de cada indivíduo mais do que da pobreza, vem da desigualdade. Teremos que tornar a sociedade mais justa, e canalizar todos os esforços de cada um, para uma solidariedade à proporção do maior desafio colectivo das nossas vidas. Por último, passado o pânico, o foco tem que ser o reforço do Serviço Nacional de Saúde, pois está mais do que provado que a única forma de termos orgulho em sermos portugueses, é garantir acesso à saúde igual para todos. Falo com alguma experiência, o espírito de missão é uma chama que não tem preço, mas desvanece com o tempo. É preciso valorizar as pessoas que valem vidas, e proteger os mais frágeis.
Este é o maior desafio das nossas vidas. Mostremos carácter.
Gustavo Carona
O grande problema é esse: tornar a sociedade mais justa, mais igual; dizer a toda a gente que todos somos iguais, todos somos feitos da mesma massa, que ninguém é mais importante – ou menos importante – do que ninguém; que todos os recursos desta terra são pertença da humanidade inteira e não apenas dos top 1 por cento. É uma tarefa difícil, mas não impossível. As suas acções como médico e as suas palavras são um despertar para todos nós. Não desanime. «O impossível é nada».