Não gosto da expressão “linha da frente”. Leva-nos a pensar que nesta luta há combatentes e civis, quando me parece que estamos todos na mesma luta, mas em papeis diferentes. E a “linha de trás” é a que pode, ou não, salvar o nosso país. O desafio reside em compreendermos que com todo este distanciamento, temos que estar cada vez mais perto. Porque o distanciamento emocional é o que nos mata.
Nos Cuidados Intensivos, numa fase em que quase todos os doentes estão a dormir ou com discursos incoerentes, sempre foi difícil de perceber quem é a pessoa por detrás da doença. Normalmente é através dos familiares que percebemos quem é que ali está ligado ao ventilador, e humanizamos ainda mais a nossa visão da medicina ao perceber o que é que aquela vida vale para tantas outras vidas. Este momento agora não existe. Ou existe limitado à frieza de um telefonema que tenta trazer a distância para perto. Em minutos, sem trocar olhares, sem ler a linguagem não verbal, sem nos darmos a conhecer ou perceber quem está do outro lado da linha, esmiuçamos a história clínica do doente, em troca da nossa visão tão transparente quanto possível, do estado de saúde do momento da pessoa ao nosso cuidado. Informação essa que vamos transmitindo todos os dias aos que heroicamente se aguentam na “linha de trás”.
Há momentos que são de uma dureza emocional que destroem os corações mais fortes por sabermos que estamos a destruir muitos mais. Há alturas em que eu penso, “porque é que eu escolhi esta merda desta profissão que me obriga a dizer pelo telefone a um filho que a sua mãe vai morrer, sem um adeus!?!”. Mas é do choro e das lágrimas que sentimos do lado de lá e juntando as nossas, que percebemos a responsabilidade e a grandeza das nossas acções. Mas não há dinheiro que pague os pregos que levamos no coração, ao fazer uma vídeo-chamada, como se substituísse uma despedida, de um familiar com alguém que vai morrer. Qual é a “linha da frente”?
Mas há momentos mágicos, de uma beleza muito intensa, onde as palavras e as imagens nunca conseguirão descrever, quando ressalta um: “obrigado por tudo o que têm feito”… ou “nunca saberei como agradecer pelo vosso esforço” ao sabor das boas notícias de melhoria de quem na luta desesperada e impotente na “linha de trás”, sente o apaziguar das emoções em efervescência no caminho da paz na alma, paz esta que é sinónimo de pura felicidade. Nós agradecemos através da distância, nos trazerem para perto de palavras que são os actos possíveis de quem lutou numa ansiedade galáctica e numa espera diária, a contar os segundos até que chegasse o telefonema que lhes transformasse a noite, em dia.
E noite e dia, nas “linhas de trás” mais honrosas a encurtar distâncias e a aproximar a humanidade que há em nós, vejo acções de solidariedade que crescem à medida que cresce o flagelo do desemprego e da fome que fustiga os de sempre, os mais frágeis. É aqui que está a maior luta da nossa sociedade, do nosso país e de toda a humanidade. É diminuir a distância, com o nosso tempo e com o nosso dinheiro, diminuir a desigualdade, porque é esta distância que nos mata enquanto povo, se não fortalecermos a luta nas “linhas de trás”. E não é com Instagramers que vendem estratégias de “reforços de imunidade” bacocas ou empresários que usam a compaixão como marketing, oferecendo uns euros para capitalizar nas vendas. É com verdade, com honestidade e justiça!
Todo o meu louvor, todo o meu apoio e admiração, aos que têm mostrado carácter ao segurar os mais frágeis, com um espirito humanitário de coração e alma, num voluntariado sólido em compromisso, com o único propósito de nos mostrar a todos que “as linhas da frente” são todos os que conseguem trazer a distância para perto.
Dentro e fora dos hospitais as linhas de combate confundem-se, numa guerra que é de todos nós. Só não luta pelo seu país, quem não quiser.
É a distância que nos mata. Aproximemo-nos de coração aberto.