7. Se eu fosse Bilionário

Eu gostava que compreendessem a dimensão do problema. Eu gostava que tivessem a noção da dimensão da desigualdade, da profundidade das carências… Comparassem aquilo que sabem do mundo, o que sabem da pobreza, o que sabem do sofrimento humano, com a visão que vos vou transmitir.

O grande problema é a educação, mais concretamente a falta dela.

A Anestesia ou Anestesiologia é uma especialidade médica já há umas décadas. Começou por ser um anexo da cirurgia na tentativa de tirar a dor e/ou adormecer o doente a ser operado, para ser uma das especialidades que mais contribuiu para a diminuição da mortalidade nos actos em que está envolvida. “Aiii, eu tenho medo é da Anestesia!” … Este tipo de lamúrias no nosso mundo já não tem razão para existir na quase totalidade das situações. É raríssimo acontecer uma fatalidade não previsível. Raríssimo. Quase zero. Porque esta especialidade cujos saberes e intervenções parecem invisíveis para o comum dos mortais, mas são anos e anos de estudo e preparação teórica e prática, para que ninguém nos morra nas mãos, e é importantíssima em várias áreas hospitalares… Mas isto é no nosso mundo. Onde felizmente alguém como eu, é apenas mais um. E não imaginam o privilégio de viver num lugar onde assim o é, porque a Rép. Centro-Africana não tem nenhum médico anestesista.

Sim, leram bem. Zero. Num país imenso com 5 milhões de pessoas. Imaginem o privilégio e a responsabilidade de trabalhar num país como este. Não há medicina sem cirurgias, e não cirurgias seguras sem anestesistas. Imaginem a quantidade de gente que morre por tudo e por nada! É asfixiante pensar nisto.

Num país onde há zero médicos-anestesistas, eu diria que quem precisa destes saberes tem 4 destinos possíveis.

1. Tem a sorte de encontrar uma ONG que tenha algum médico anestesista. É uma sorte, quase um milagre neste país.

2. Cruzar-se com um hospital que tenha um enfermeiro de anestesia. Eu na maternidade de Bangui trabalhava com 5 enfermeiros de anestesia. Já há muitos anos que eram formados continuamente pelos MSF. São conscientes e competentes. Terão sempre lacunas nas situações mais difíceis, mas são cuidadosos, organizados e profissionais. Uma vez o David, que era um desses enfermeiros já com cerca de 60 anos, diz-me que é o presidente da associação de enfermeiros anestesistas da RCA, e dá-me um documento (que guardo até hoje com muito carinho) sobre a análise da anestesia neste país… Foi dos momentos em que fiquei mais sensibilizado e mais enternecido com papeis na minha mão… Pelo simplicidade, pelo carinho e pela sua análise cuidada da miséria que é este país. O David disse-me que não chegaria a 30 os enfermeiros anestesistas de todo o país, e que os conhecia a todos pelo nome… Se eu pudesse, naquele momento, dava-lhe o prémio Nobel da Paz e da Medicina… mas tudo o que eu tinha para lhe dar eram os meus olhos húmidos num pensamento profundo, do quão triste era a situação, e quão bonito e inspirador era este senhor. Pela primeira vez em todos os meus 35 anos de vida passou-me uma ideia na cabeça: “Eu se fosse um homem a sério, devia era ficar aqui a vida toda!”

3. Algo parecido com a roleta russa. Uma vez fui fazer umas formações a uma cidade longínqua no norte do país, que se chama Kaga Bandoro. Deve ser a 4a ou 5a cidade da RCA. As formações eram mais na área do trauma, catástrofe, gestão de multi-vítimas pois era uma zona bastante perigosa. Mas entrei no bloco operatório só para dar uma “vista de olhos”… E fiquei incrédulo. Quem fazia a cirurgia era um estudante de medicina do último ano, sem nenhum médico formado ao lado, e quem fazia a anestesia era…. ninguém! Alguém ia dando Ketamina à sorte, e às vezes mediam as tensões arteriais e mais nada! Sem monitorização da frequência cardíaca, ou da saturação de oxigénio, sem conhecimentos nenhuns, a doente podia parar de respirar que ninguém notaria… Isto era o hospital principal da cidade, onde a vida das pessoas está entregue ao acaso…

4. Simplesmente morrem.

5. Mas a área da da anestesia é obviamente apenas uma representação de todas as outras. As deficiências de formação e conhecimento são tantas que é muito difícil encontrar recursos humanos válidos e capazes. Eu lembro-me uma vez no hospital principal da capital (Bangui), em que me chamaram para ver um doente que estava “a piorar”… Eu avalio o doente, analiso os registos e vejo ali discrepâncias graves no dossier do doente… Nomeadamente na frequência cardíaca… Um medi 130 batimentos por minuto, e nos registos há minutos atrás estava 70 bpm. Eu fico indignado e chamo o enfermeiro em questão. E pergunto-lhe qual é a frequência cardíaca do doente… Ele vê os registos e responde: “70”… E eu contraponho: “Eu já vi o que escreveste, mas quero que me digas qual é a frequência cardíaca deste doente.” … Ele ficou atrapalhado e disse-me: “O oxímetro está avariado.”… O oxímetro, serve para medir a saturação de oxigénio no sangue, mas também nos dá a frequência cardíaca… Eu começo a ficar profundamente chocado, e disse-lhe : “Pegas num relógio/telemóvel e contas tu, por favor, a frequência cardíaca.” … Ele esboçou que fazia qualquer coisa, mas tornou-se inevitável assumir o que eu nunca esperei que fosse possível: “Eu não sei fazer isso!” diz-me ele…

Isto é muito grave! Não saber sentir a pulsação, seja onde for e medir os batimentos por minuto, ou por 30 segundos e depois multiplicar por dois, é para além de escandaloso…. É gritante… E isto vindo de um enfermeiro que tem um diploma, e vive na capital do país… E casos como este são muitos… mas não todos felizmente…

Eu ensinei-lhe como se media a frequência cardíaca, expliquei-lhe também que não se mente nos registos, muito menos nos sinais vitais… porque tal como o nome indica, a vida dos doentes depende da avaliação correcta destes sinais…

E fui à minha vida a pensar que os desafios são muito maires do que eu pensava… Se ele não sabe contar a frequência cardíaca… quando é que chegará o momento em que eu lhe poderia explicar a interpretação dos diferentes valores da frequência cardíaca…

As vidas que eu salvo sabem-me muito bem a mim, e às pessoas envolvidas, mas estaticamente valem ZERO… Tudo o que interessa é o conhecimento que deixamos no local, é a formação, é a educação, são as ferramentas para ter mais e mais conhecimento e no caminho da autodeterminação… é a escola, no verdadeiro sentido da palavra…

Se eu fosse um Bilionário… criava uma ONG e espalhava escolas pelo mundo subdesenvolvido, assim como o MacDonalds espalha restaurantes pelo mundo. Um franchising contra a ignorância.

Dava tudo para a formação de quem não tem escola.

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