Quando nos põem um palmo de gente, de dois meses nas mãos, é impossível não sentir o coração a tremer. O bebé estava bastante doente, e entendemos a cirurgia como uma inevitabilidade. Muito arriscada, mas inevitável. A grande prioridade do nosso hospital dos Médicos Sem Fronteiras eram os feridos de guerra. Acho difícil que em algum momento da história das últimas décadas, tenham havido tantos feridos de guerra, por dia, dias consecutivos, durante tanto tempo, como na batalha por Mosul, no norte do Iraque. Quando cai uma bomba no meio de uma cidade, as possibilidades de ferimentos são incontáveis. A energia da explosão propriamente dita, pode projectar uma pessoa e causar lesões graves pela queda, ou pela aceleração e desaceleração do movimento de órgãos internos. A queda de muros, paredes, telhados, vidros de janelas podem ser armas mortais sem escape. Os estilhaços são dos maiores desafios com que nos deparamos neste tipo de cenário, mas entenda-se que a maioria dos outros, nem chega ao hospital. Há uma chuva de estilhaços em todas as explosões de grande energia que projectam todo o tipo de materiais à velocidade de uma bala, que causam todo o tipo de lesões em todo o tipo de órgãos. Pedras, vidros, metais causam o mais variado design de “tatuagens” no corpo das vítimas. Perdi a conta à quantidade de corpos cheios de estilhaços de alto a baixo que vi ao longo desta missão, e mesmo vendo o ponto de entrada na pele, nada sabemos sobre o seu trajecto dentro do corpo, que é tudo menos previsível. E para completar o quadro de desafios de guerra, os queimados. Quer pelas explosões, quer pelo facto de que em zonas pobres o fogo serve para cozinhar, e aquecer no inverno, e com isso é muito frequente acontecerem queimaduras acidentais principalmente nas crianças. Nas minhas missões anteriores já tinha lidado com muitas crianças queimadas, mas como nesta missão nunca tinha visto. Nem de perto. Tínhamos uma tenda/enfermaria só para crianças com umas 20 camas, que estavam sempre cheias e na quase totalidade eram queimadas. E apesar do nosso foco principal no hospital ser o trauma de guerra, com um apoio satélite a um centro de saúde para doenças crónicas, as particularidades desta guerra trouxeram outro enorme flagelo, em larga escala, a fome.
Esta batalha tinha algo de muito particular, o Estado Islâmico encurralado em Mosul entre o rio Tigres e o exército iraquiano, escudava-se na população que impedia de fugir e por isso estavam sitiados sem qualquer comunicação com o mundo. A escassez de alimentos dentro de cerco a Mosul levou a que um quilo de açúcar custasse mais de 100 dólares, para que se entenda que não havia nada. As pessoas, desesperadas comiam os animais domésticos, e os níveis de desnutrição crítica rapidamente tornou-se um dos maiores desafios desta guerra. A desnutrição é particularmente crítica nas crianças, e quanto mais pequenas, mais mortal é a fome, e mais difícil é de reverter as consequências da subalimentação. E pela elevada quantidade e extrema gravidade da desnutrição em bebés e crianças que iam sendo libertados de Mosul, em risco de vida, o hospital criou um centro de nutrição intensiva para o melhor tratamento e acompanhamento destas crianças extremamente vulneráveis, em grandes números. Eu, em nada me relacionava com esta área do hospital, excepto na dor de coração que me causava, eu não tinha nenhuma intervenção médica neste campo da nutrição, até ao dia em que chamaram a equipa cirúrgica para avaliar este menino de 2 meses.
Este menino, era um de muitos que estava internado no centro de nutrição intensiva, para se restabelecer do seu estado paupérrimo de saúde. E passados uns dias de alimentação, desenvolveu um quadro que parecia ser de oclusão intestinal… Vómitos, abdómen distendido, ausência de fezes. Vários médicos discutiram o caso dos diferentes prismas, e a decisão foi operar, sabendo que era uma intervenção de desespero. Em condições tão básicas, todo o peri-operatório de uma cirurgia abdominal a um bebé de 2 meses extremamente desnutrido e desidratado, é caminhar num trapézio sem rede. Com esta realidade em perspectiva, fomos lestos a explicar detalhadamente a nossa leitura, os riscos e a inevitabilidade da cirurgia, à mãe. Gente muito humilde, muito pobre, com uma compreensão muito reduzida do que tentávamos explicar, mas confiou e aceitou a nossa leitura.
Quando pego no bebé para o levar para o bloco operatório é que percebo o meu coração a tremer. Aqui começa a minha responsabilidade. No sentido literal e figurado tenho a vida da criança nas minhas mãos. A fraqueza, a magreza, a falta de vitalidade, a pele seca, os olhos mortiços e encovados, tudo, mas tudo mesmo, me preocupa neste menino. Recolho-o nos braços tirando-o do olhar atento da mãe a caminho do bloco operatório, enquanto disfarço a minha inquietude pelo desafio que tenho nas mãos. Estou confortável com a decisão que tomámos, mas extremamente nervoso pela complexidade do caso clínico, nas condições simples em que trabalhámos. As minhas mãos são tão grandes, e ele é tão pequenino e tão frágil que faz com que todos os gestos sejam difíceis. A cateterização de um acesso venoso demorou uma eternidade, a entubação da traqueia foi inesperadamente difícil, e todos os gestos médicos e de enfermagem foram périplos de boa técnica, paciência e rasgos de sorte, até o menino estar anestesiado e pronto para a cirurgia. E aí começa a cirurgia. Dois cirurgiões muito experientes, um italiano e uma brasileira, à procura da causa desta oclusão intestinal num pedacinho de gente tão pequenino e tão fraquinho. Tiram as tripas todas cá para fora para que se inspecione minuciosamente todo o tudo digestivo…. Saiem suspiros em várias línguas de hesitação e incompreensão, até que detectam um aperto algures no intestino delgado que parecia ser a causa do problema. Fazem uma recessão de um pedaço do intestino e uma anastomose (uma ligação), e meticulosamente são unidos os topos do intestino ressecado, e recolocado todo o intestino na cavidade abdominal… Chegamos ao fim da cirurgia, os cirurgiões festejam vitória e com bons motivos para isso, foram sensatos, corajosos e hábeis… Mas para mim é só o passar de uma etapa de um caminho que ainda ia bem no início. O bebé está muito fraco, a cirurgia é sempre uma agressão acrescida, e a desnutrição é todo um mundo de grandes surpresas e desafios. O acordar da cirurgia e a recuperação da ventilação espontânea correu bem, e chegavam-me boas notícias do exterior do bloco operatório. Contactos tinham sido feitos para um hospital que tinha cuidados intensivos pediátricos. Era um hospital chamado Aspen, uma estrutura privada se bem percebi que dependia de mecenas mundiais que entenderam ajudar também a minimizar os danos da guerra no norte do Iraque.
Já de noite, o calor abrasador acalma. Quando me parece o tempo certo de pós-operatório imediato, pego na criança ao colo e no material médico que entendo necessário e avanço para a ambulância. E depois entra na ambulância a mãe, que era a única acompanhante autorizada a entrar no hospital Aspen. Do ponto de vista de segurança médica parece-me mais sensato que seja eu a transportar o bebé nos meus braços e não a mãe, embora esta situação me cause algum embaraço agravado pela barreira linguística. Eu apenas sei dizer uma meia dúzia de palavras em Árabe, o que tento colmatar com linguagem não-verbal de gestos atabalhoados, olhares e sorrisos para tentar acalmar o coração desta mãe que vai com um estranho que nem a sua língua fala numa ambulância a segurar o seu filho extremamente frágil. Ela não me encara de uma forma explícita, e os meus sorrisos que pretendiam substituir o Árabe que não falo, ficam soltos no ar. Dela, ouço uma ladainha. Um murmurar nervoso, rítmico, que me soa a uma reza, com um olhar perdido como quem está em hipnose, centrado no vazio e por vezes olha para os meus braços, onde encontra o motivo das suas preces embrulhado num cobertor que só deixa que se veja a cara que tem uma sonda no nariz, e mais alguns fios para a monitorização dos sinais vitais… É muito difícil falar com uma mãe que tem um bebé tão doente, mas mais difícil é não falar. Já peguei em centenas de crianças nos braços sem falar a língua dos pais, mas esta coabitação no habitáculo da ambulância foi de uma estranheza desconcertante. São minutos que parecem vidas, em que a minha mente viaja no tempo e nos espaços do tanto que nos une, quando parece que tudo nos separa. O bebé está criticamente doente, mas estável, e vai me valendo isso para que recentre o meu norte neste mundo que parece ter regras que ninguém conhece. Há um afastamento entre mim e esta senhora de anos-luz de distância, mas que coexiste paradoxalmente com uma confiança que nos une, que nos coloca lado a lado. Eu vejo nela uma mãe. E ela vê em mim um médico. Estranho para o seu mundo, mas um médico.
Ao chegar ao dito hospital Aspen, sou surpreendido com todo um aparato bélico de protecção do terreno que faz parecer uma estrutura militar. Muros altíssimos, postos de vigia com seguranças armados, vários checkpoints de segurança, com cães a farejar a ambulância, todo o tipo de dispositivos de detecção de explosivos a rondar o nosso veículo, vários homens armados a entrar na ambulância com olhares vigilantes e perguntas secas, até que já passadas 3 barreiras de segurança entram para nos revistar. Eu estou de roupa de hospital, e não tenho mais nada do que um telefone no bolso e um bebé nos braços. A revista não era para mim. Fazem entrar uma mulher segurança na ambulância e começam a revistar a mãe. Várias perguntas em Árabe que me passam completamente ao lado, acompanhadas de mãos por todo o lado. Eu desvio o olhar por boa educação mas é impossível não perceber tudo o que se está a passar. Mãos na roupa, por baixo da roupa, no véu, no cabelo, no saco de roupa da senhora e do bebé… A senhora foi virada do avesso. Mexeram nela, mas por dentro mexeu comigo. Incomodou-me. Eu sei bem onde estou, e sei bem que a segurança numa zona de conflito é assunto sério, e várias mulheres usam o seu estatuto de privacidade feminina para cometer enormes atrocidades… mas eu estava com um bebé de dois meses em risco de vida nos braços, e para mim, por mais distante que esta senhora estivesse de mim, ela era uma mãe. Tão só e apenas isso, uma mãe. Mas parece que o mundo é a forma como olhamos para ele, e não o que lá está. Tudo depende do filtro que escolhemos para o nosso olhar. O filtro do nosso olhar.
O nosso hospital dos Médicos Sem Fronteiras tinha apenas uma sinalética fazendo alusão á proibição de armas, um guarda com detector de metais, e a estratégia universal que “garante” a nossa protecção: neutralidade, imparcialidade e independência. Parece romântico, utópico e onírico, mas tem anos de implementação e análise no terreno, e funciona. O que nos protege é a aceitação do povo. Tratamos toda a gente, é improvável que nos queiram mal. A curto, médio e longo prazo é a única estratégia que funciona. A guerra e a paz, só se ganham quando se ganha o coração das pessoas. E por mais nobre que seja a intervenção médica ou humanitária, tenho dificuldade em acreditar que se conquiste o coração das pessoas por detrás das armas e dos muros altos, porque condiciona os filtros dos olhares das pessoas que são a razão para lá estarmos.
E tudo depende do filtro do nosso olhar.
O menino faleceu passados uns dias. Tentamos. Choramos. Seguimos. Seguimos com a convicção forte de que olhamos com o filtro certo. Por vezes pode parecer pouco, como foi para este bebé e para esta mãe, mas é tudo que depende de nós.
Eu não me lembro do seu nome, mas lembro da sua história e lembro-me de como ele e a sua mãe foram olhados. Por mim, por nós, foram olhados como gente.
Como é que o coração aguenta? Como é que a mente, se mantém
Que coragem é essa a vossa?
Estou aqui de coração apertado, por esta leitura. Pela dureza de tudo, pelas realidades cruéis que existem.
Que o teu coração aguente e se mantenha saudavelmente corajoso.
Obrigada