Nunca como em Mosul senti que estava a viver tão intensamente. A sensação de que a escassos quilómetros de onde eu estava, os bombardeamentos eram constantes, e que centenas de milhares de pessoas estavam sequestradas pelo Estado Islâmico, num cerco que eram as linhas da frente do combate, tornavam o nosso dia-a-dia numa estranha sensação de quem está a viver o presente, mais presente de todo um planeta. As histórias de vida entravam pelo nosso coração a dentro. Histórias de violação e tortura, crianças a morrer à fome, fugas do centro de Mosul de gente que dormiu entre os corpos no meio do chão para conseguir fugir, e tantos outros que tentaram e foram abatidos a tiro. O Estado Islâmico escudava-se no maior número de civis possível para que a guerra fosse quarteirão a quarteirão, rua a rua, porta a porta.
O sofrimento colectivo era de tal ordem que os Médicos Sem Fronteiras, a nível da coordenação, abordavam-nos a nós trabalhadores no terreno, sobre a eventualidade de se fazer testemunhos do que se estava a passar para que o mundo saiba. A comunicação de uma ONG como os MSF num cenário de guerra, é algo de muito delicado, porque um organismo humanitário é por definição, apolítico. E para se poder trabalhar em cenários de guerra de uma forma neutra e imparcial, é preciso que não se tome qualquer posição pública que se possa aproximar de uma facção. Cada vez que respiramos, cada vez que damos um passo, cada vez que expomos um pensamento estamos a fazer política. Mas o que permite a uma ONG trabalhar em segurança nos locais mais complicados do planeta é não fazer política. Fazer política implica tomar um partido o que significa ser inimigo de alguém, e aí o projecto fica em risco e já não se salva a vida a ninguém. Mas não raras vezes de uma forma altamente profissional e profundamente reflectida os MSF são delatores dos acontecimentos mais trágicos, em muitos locais onde nem os jornalistas conseguem chegar, mas denunciam “apenas” o sofrimento de seres humanos, sem ultrapassar o tom da neutralidade.
No meio deste mar de tristezas eu recebi um presente. O meu amigo Andres. O Andres é cirurgião e é argentino, trabalhámos juntos no Afeganistão em 2012, e ficámos amigos desde então. A cumplicidade que se cria quando se trabalha em ambientes de grande tensão dento e fora do hospital é enorme. Veio-me visitar ao Porto, e por pouco não o apanhei em Buenos Aires uns anos mais tarde. E cruzar novamente o caminho de um amigo, no norte do Iraque, por circunstâncias do acaso, é maravilhoso. Trabalhámos juntos, pusemos a conversa em dia, e rimo-nos bastante. Como tínhamos duas equipas cirúrgicas de expatriados, e aos poucos íamos integrando mais profissionais iraquianos, permitimo-nos ir dar apoio a outros projectos que precisavam de actividade cirúrgica e não tinham gente qualificada. Íamos então uma ou duas vezes por semana realizar procedimentos cirúrgicos simples à cidade de Hamdaniya , onde os MSF tinham um hospital apenas vocacionado para a reabilitação de casos pós traumáticos difíceis. Para além de fazer o que no entender dos MSF for o mais útil para ajudar o povo iraquiano, também via com entusiasmo a possibilidade de viajar. Ver pessoas, ver mundo, ver caminhos, e testemunhar o que é um país totalmente destruído pela guerra, mas que tem uma identidade bem vincada em milénios de história. Esta cidade era uma cidade cristã, bem identificada por uma cruz gigante à entrada da cidade.
Embora eu não comungue de qualquer fé, e até tenha excluído do livro “1001 Cartas Para Mosul” mensagens que se dirigiam exclusivamente aos cristãos do Iraque (que são cerca de 2% da população) por entender que essa humanidade exclusiva para uma certa religião, ia contra o propósito do meu livro, eu não me consigo despir na totalidade das minhas raízes, da minha cultura, da minha educação e até do meu baptismo, mesmo não sabendo bem que significado isso tem para mim, é um pedaço do que eu sou. O Estado Islâmico como qualquer movimento extremista radical quer exaltar a sua identidade, neste caso de muçulmanos sunitas, ostracizando, rebaixando, excluindo, matando, torturando todos os rótulos de gente que não seja a deles. Os cristãos foram dos primeiros alvos, era um alvo fácil. A cidade de Hamdaniya, foi aniquilada. Mas ao contrário de quase todas as pequenas cidades por onde eu ia passando, que estavam todas semidestruídas, e com todas as paredes tatuadas por rajadas de metralhadora (até o quarto onde eu dormia tinha tiros por dentro nas paredes do quarto), esta cidadezinha estava imaculada, mas completamente vazia. Todas as casas, todas as lojas, tudo estava fechado como se fosse uma cidade fantasma. Não deve ter havido guerra aqui. O Estado Islâmico fez evaporar toda a gente, matando, raptando, escravizando e com decapitações em praça pública que faziam passar rapidamente a mensagem que qualquer forma de cristianismo seria eliminado. Por mais que tenha um pensamento irreligioso, conseguia sentir que naquela cruz enorme no centro da cidade, escorria sangue que era também uma parte de mim. Fazer quilómetros nesta zona do Iraque, era perseguir as pegadas ainda frescas do rasto de destruição e morte deixados pela maior expressão de desumanidade dos tempos modernos.
Uns dias mais tarde a proposta de mobilidade de uma equipa cirúrgica foi bem diferente. Chamaram as duas equipas cirúrgicas para uma reunião entre chefias de diferentes projectos dos MSF. A guerra avançava. O estado islâmico estava cada vez mais encurralado por todos os lados, mas prometia lutar até ao último homem. As linhas da frente desenhavam um semicírculo cada vez mais pequeno entre o rio Tigris e a parte histórica de Mosul, uma área que era cada vez mais pequena, mas densamente habitada. A zona a leste do rio já tinha sido toda libertada. Mas com todas as pontes destruídas, a zona oeste ia ser muito trabalhosa de conquistar. A conversa era sobre o facto de que os MSF acabavam de pôr a funcionar um pequeno hospital na parte Oeste de Mosul a 1 ou 2 quilómetros do combate, mas faltava-lhes um cirurgião e um anestesista para poder abrir portas. No trauma 30 minutos, 1 hora podem fazer a diferença daí que estar mesmo em cima das linhas de combate pode salvar muita gente. Mas a proposta é assustadora. Dias antes num carro dos MSF entrou uma bala de um sniper do Estado Islâmico pelos dois vidros do banco de trás, passando a bala á frente dos olhos de três pessoas, não atingindo ninguém por um feliz acaso. Foi sorte. A ameaça de tiro de sniper era muito real, assim como de um bombista suicida com colete, ou por carro, e como se o ambiente não estivesse já tenso o suficiente a conversa desliza para a utilização de coletes anti-balas, capacetes e máscaras para armas químicas. Eu estava há umas semanas a ouvir as histórias das maiores atrocidades imagináveis que vinham deste lugar que eu ia construindo no meu imaginário chamado Mosul Oeste, e agora a proposta era ir para lá dia sim, dia não, até que chegassem mais médicos dos MSF para reforçar as equipas. Quando nos abrem o portfolio de riscos com toda a honestidade e nos abordam daquele jeito que é, “compreendemos se não quiserem ir”… é porque o risco é mesmo muito grande. Mas eu confio na análise de risco dos profissionais MSF, e ao mesmo tempo sou invadido por uma enorme curiosidade de conhecer a mítica cidade de Mosul, de onde vinham todos os feridos que tratara até então. “Então ok. Se estamos todos de acordo, amanhã arrancamos às 6.00, e não se esqueçam de cada um, pegar num kit contra armas químicas.”
Nessa noite quase não dormi, a cabeça viajou com muita força, a grande velocidade e a grande intensidade. Arrancámos pela fresca, mas rapidamente o calor torna-se de morrer. O terreno é desértico e toda a beira da estrada transborda imagens de guerra e destruição. Carros explodidos, tanques de guerra empenados, casas destruídas, depósitos de água com furos de tiro, crateras de bombas à beira da estrada… imagens muito vividas de toda a guerra que passou por cada estrada… E como íamos em direcção ao epicentro do conflito vamos em contramão com o êxodo de iraquianos recém-libertados de um vendaval de torturas. O nome para esta gente que ficou sem nada e sofreu o inimaginável é, deslocados. A maioria fugiu com a roupa do corpo. Não sabem o que resta das suas famílias, e o que lhes espera é viver em condições desumanas numa tenda de plástico num campo de deslocados. As caras com que me ia cruzando à medida que avançava na estrada não tinham expressão. Ninguém ria, ninguém chorava, pareciam mortos por dentro. E se calhar estavam.
O que é também uma imagem de marca dos cenários apocalípticos, é a presença de checkpoints. A cada cruzamento, a cada 500 metros de estrada havia um checkpoint. E é nestes momentos que percebemos, ou melhor, não percebemos a complexidade da guerra. Cada checkpoint era diferente, com uniformes diferentes, uns com um aspecto mais oficial que outros… E os iraquianos que iam connosco no carro iam-nos explicando em linhas tortas quem era quem. Exército, milícias, grupos paramilitares, divisões nos grupos com lideranças diferentes. Complexo e de alguma forma assustador, porque mesmo tendo um inimigo bem definido, toda a conjuntura de forças contra o Estado Islâmico é uma salada de grupos armados. Todos com a sua metralhadora bem firme na mão, todos com um olhar intimidador, e vão olhando para os nossos documentos com mais ou menos atenção, e vamos seguindo caminho… Sempre com a nota complementar dos nossos amigos iraquianos “no regresso é que é mais complicado”, o que realmente era bastante óbvio, na ida para o inferno ninguém faz muitas perguntas, na saída do fervilhar do extremismo é que a peneira é mais minuciosa.
Quando começámos a chegar a Mosul, o meu coração ficou mesmo muito pequenino. Edifícios arrasados um atrás do outro. As bombas desenharam uma arte de destruição em que várias formas se desenhavam pelo traço que cada bomba conseguiu fazer a cada casa, a cada edifício, a cada rua. Escombros incompatíveis com qualquer sentido de humanidade. No entanto nestas partes já libertadas de Mosul, havia vida. A vida continuava. Vivia gente nos pedaços de edifícios que se mantinham de pé. As pessoas andavam na rua, e as crianças brincavam neste parque de entulho gigante. A batalha mais dura de que há memória, está a 1 ou 2 quilómetros, e no entanto aqui a vida parece estar bem viva. Imagino que são os que se recusam a ir viver para tendas de plástico sem condições. Imagino que quem esteve à beira da morte, sinta mais a vida. Imagino que quem tudo perdeu sinta que tudo tem a ganhar. Imagino muita coisa com a cara encostada ao vidro do carro vidrado nas imagens que se vão desenrolando á minha frente na ida para o hospital que nos esperava.
Este grande pedaço da cidade já livre do Estado Islâmico tem duas faces. A face que olha para a parte histórica e central de Mosul onde decorre o conflito a toda a hora, e que está ainda a viver o risco de estar ao alcance do fogo da guerra, e por isso está deserta, inerte, abandonada. E depois a outra face que de alguma forma está protegida e que olha em sentido contrário das linhas da frente, onde já se desenrola uma espécie de normalidade, com comércio aberto, pessoas a habitar os apartamentos, e gente a andar nas ruas. Chegámos ao hospital dos MSF. Um edifício de 3 andares que era uma clinica privada, entretanto desactivada desde a vinda do Estado Islâmico 3 anos antes, e que agora foi reactivada pelos MSF para apoiar as vítimas deste conflito. Mal chegamos fazem-nos um briefing de segurança, explicando onde é o bunker em caso de ataque, e onde se encontram os capacetes e os coletes anti-bala, visto que a máscara para armas químicas já trazíamos connosco.
Eu e o Andres fomos para o bloco operatório orientados pelo enfermeiro responsável, para ver se estava tudo em ordem em termos de material cirúrgico e anestésico para garantir a nossa operacionalidade. Estava tudo impecavelmente bem preparado e bem organizado, nunca é demais contemplar a eficácia e organização que os MSF colocam nas suas acções em qualquer ponto do planeta. Depois fui até ao serviço de urgência explorar também a organização, o material disponível e apresentar-me ao staff para me sentir pronto para actuar quando fosse necessário. Deparei-me com uma situação inacreditável, um homem alto e forte, sorridente e simpático entra na urgência a dizer que tem uma bala na cabeça. Eu não percebia nem metade da conversa, apenas me iam traduzindo alguns excertos da conversa com o homem. O ambiente era de galhofa. O senhor contava a sua história e as pessoas riam-se, e ele ria-se de volta. Estava tudo a rir-se, com esta história encantada de um homem a roçar a aparência de boa disposição delirante, a dizer que tinha uma bala na cabeça. Acho que só aceitaram fazer-lhe o Rx de Crânio porque ele era muito sorridente e afável. Mas o que é facto é que ele tinha mesmo uma bala na cabeça. “Teve sorte”. A história de quem cá está é sempre uma história de sorte. Estar vivo é ter sorte. E este homem estava bem vivo e teve muita sorte, levou um tiro na cabeça e esta entrou algo tangencialmente à pele a alojou-se debaixo desta em frente à orelha, sem ter penetrado o crânio e lesado o cérebro. Os que cá ficam acreditam que deus os protegeu, os que partiram vão “lá” ver se ele existe. A vida é o que nós quisermos. Ainda tivemos conversas médicas profundas e interessantes, sobre o que fazer à bala do senhor, mas a opinião foi mais ao menos unânime que ele irá viver bem com a bala na cabeça o resto da vida, e nada fizemos por opção clínica.
Eu e o Andres fomos ao rooftop do edifício para sentir. Ao longe víamos os sinais de fumo. “Está mesmo ali a guerra!”. Nunca tinha tido esta sensação. Estava a ver uma guerra em directo. Não via grande coisa, a não ser fumo a subir aos céus a diferentes ritmos, e com diferentes tamanhos e feitios. Mas estava à distância dos meus olhos. Os bombardeamentos eram constantes. Em momento algum deixava de ver máquinas voadoras de guerra, e cogumelos de fumo a desenhar a história do sofrimento de tanta gente pelos ares. A ser bombardeado estava o Estado Islâmico mas ainda escudados em centenas de milhares de civis. Comtemplar esta tragédia à distância de um olhar é arrepiante, e depois de estar umas semanas a receber feridos no hospital onde estava a trabalhar, imaginava todo um mundo de histórias que se estavam a escrever a sangue bem vermelho naquele momento. Acho que perante tal catástrofe, sentia-me com sorte. Sentia que por mais que eu estivesse tão perto dos horrores, eu tinha a sorte de estar do lado dos que ajudam e não dos que sofrem. Era o que eu sentia no terraço daquele prédio, a contemplar a máquina de guerra dos americanos e aliados a ir com tudo contra o Estado Islâmico, sentia-me com sorte. Eu estava vivo, estava bem vivo, em condições de poder ajudar, e isso é porque tinha e tenho sorte. Muita sorte.
Estava um calor de morrer, e nós a contemplar a vida, enquanto assistíamos a morte ao longe. Mas não por muito tempo. Toca a sirene. A sirene põe-nos em sentido e descemos rapidamente até ao piso do serviço de urgência. A sirene anunciava neste caso uma vaga de feridos vindos algures dos fumos que víamos nos céus à nossa frente. Corpos empoeirados, retirados debaixo de escombros, sangue misturado com terra e detritos. Gente seca e desnutrida, coberta em pó a fazer parecer corpos embalsamados. Dois chegam-nos sem vida, a ver se têm a sorte de encontrar a vida no mesmo céu de onde caíram as bombas que os mataram. Chamam-me à atenção de um rapazinho. Devia ter uns 5anos. Tem vários estilhaços pelo corpo e múltiplas queimaduras. Tem o cabelo todo queimado. Os olhos estão negros provavelmente do impacto da explosão. Tem um choro inocente. Mais do que tudo dá vontade de abraçá-lo, mas não é essa a minha função. Examino-o com o rigor e o cuidado que se impõe juntamente com o staff iraquiano. Reparo que tem um estilhaço que penetra o Tórax mesmo debaixo do mamilo esquerdo. Eu levo uma descarga de adrenalina de preocupação. “E se lhe foi ao coração?”. Uma perfuração cardíaca normalmente não fica para contar a história, mas por vezes pequenos furos contidos podem causar o que nós chamamos um tamponamento cardíaco. A minha cabeça começa logo a imaginar muitos cenários e potenciais intervenções com o material que tinha à disposição. Vou buscar o ecógrafo. Pela exploração da ferida é difícil de perceber a profundidade, e com o ecógrafo vejo detalhadamente se tem sinais de ter sangue no pericárdio, no espaço pleural ou até na cavidade abdominal. Parece que não. Avalio e reavalio, e não tem, teve sorte. Tem “apenas” umas queimaduras dispersas pelo corpo. Eu nunca tinha visto tantas crianças queimadas como em Mosul. Nas zonas rurais de África já vi muitas crianças queimadas pelos fogareiros com que cozinham as mães, mas aqui vi muitas mais, e queimadas pelas armas de destruição, queimadas por explosões. As queimaduras em crianças pequenas são altamente letais, e os que sobrevivem são doentes extremamente exigentes, com necessidade de múltiplas idas ao bloco para limpeza das feridas, com cuidados de penso muito complicados e posteriormente vêm a precisar de enxertos de pele, e não raras vezes ficam com os tecidos retraídos e anomalias da mobilidade para sempre… Teve sorte o rapazinho, nenhum dos estilhaços lhe causou danos relevantes e as queimaduras não foram muito extensas. Encontrei-o uns dias mais tarde no hospital onde eu trabalhava por norma, e ficamos amigos. Aí já pude dar-lhe o abraço que me ficou na cabeça durante os dias. Teve sorte e eu mais por ter aquele abraço ao lado do sorriso da sua mãe.
Fizemos o que tínhamos a fazer e o que pudemos fazer. Este dia mexeu muito comigo, e é tempo de fazer mais uns quilómetros de volta a casa. Vou em silêncio a recolher memórias que os meus olhos tiram das ruas, das casas, das pessoas, das roupas, das caras, de todo um mundo mesmo aqui ao lado, mas que para muitos é sempre mais fácil fingir que não existe. Quando começámos a ver Mosul pelas costas, começam de novo a aparecer os checkpoints. Mas para sair daquele inferno há mais ferocidade por parte dos homens das armas. Os olhares para dentro do carro são mais intimidatórios, as perguntas ao motorista são mais brutas, e as mãos nas armas estão mais tensas. Eu continuo sem perceber quem é quem, entre militares, paramilitares e diferentes facções fieis a este ou àquele general. Eu ia no carro com o Andres e apenas com um motorista que mal falava Inglês, pelo que não deu para aprender muito sobre esta complexidade da guerra. A determinada altura, para aí no 5º ou 6º checkpoint ao longo da estrada a sul de Mosul, lá parámos outra vez para o mesmo interrogatório. Mas desta vez começou a ficar mais pesado o ambiente. Um militar sozinho com a mão na metralhadora, vai trocando argumentos em Árabe com o motorista. Nós tínhamos instruções muito rígidas para este tipo de situações: nada de óculos escuros, mãos à vista e sem nunca tocar no telemóvel, olhar em frente descomprometido e esperar que o motorista responda às perguntas que lhe são feitas. Eu ia percebendo palavras avulso, como “médicos” e “hospital” e “médicos sem fronteiras”. O motorista mostra-lhe os documentos todos, mas o militar está cada vez mais tenso nas palavras…. Estamos no ramadão e ele deve estar sem comer, nem beber há mais de 12 horas, e isso não deve deixar ninguém bem-disposto… O tom do militar começa a deixar-me nervoso. Ele atira palavras para o motorista enquanto nos olha fixamente com ar de quem nos está a examinar ao detalhe…. É horrível esta sensação de impotência, quando uma conversa com pessoas armadas começa a descambar… Eu percebo que o militar pergunta ao motorista de onde é que nós somos, e este responde “Bélgica”, porque o motorista não fazia ideia de onde nós somos, e nós estávamos a trabalhar com os MSF-Bélgica… Hesitante, o militar dirige a conversa para mim, e pergunta-me coisas que eu não percebi, e eu só respondi… “Mafi Arabic” (não falo Árabe), mas ele insiste em mim com um ar ameaçador e pergunta-me:
– “Real Madrid ou Barcelona?” , como se fosse uma charada em tom de ameaça, tipo roleta russa…
Quando há 50% de hipótese de enervar um homem tenso com uma arma, não dá muita vontade de responder a esta brincadeira de guerra… e eu fui a medo:
-“Eu, Portugal…” disse eu para não me comprometer.
-“Portugal! Cristiano Ronaldo! Real Madriiiiddddd!” …. disse o militar a rir-se com grande entusiasmo, e de imediato devolveu os papeis ao motorista, dando sinal que podíamos ir á nossa vida. “Real Madrid gooooddd” terminou ele.
Respirámos de alívio e seguimos viagem.
Tivemos sorte. Se a pergunta tivesse sido para o Andres, a conversa iria para Argentina e Messi… e o militar ia ficar mais irritado. Mas não foi. Tivemos sorte.
Enquanto cá estamos para contar a história, é porque tivemos sorte. E a sorte é uma coisa maravilhosa. Usê-mo-la com cuidado, com carinho, e com bondade.
A sorte de uma bala que passa por um carro sem atingir ninguém, a sorte de uma bala que fica na cabeça sem penetrar o crânio, a sorte dum estilhaço que por pouco não vai ao coração e a sorte de ter esse abraço, a sorte de ter um Português no Real Madrid, mas acima de tudo a sorte de estar do lado dos que podem ajudar e não dos que estão a sofrer com a guerra.
É sorte.
Já comentei esta história no Facebook mas volto a comentar… Porque fiquei agarrada a ela do início ao fim. A maneira como escreve faz-me sentir tudo,quase sinto o sabor e o cheiro de todas estas vivências. No meio de todo este cenário, foram várias as “sortes” que passaram a morte de raspão. Não imagino o que é estar lá,nunca conseguiria ter essa coragem de ir e viver aquilo tudo de tão perto… Vivo através do seu livro e das suas histórias. E espero que um dia, todo este terror e sofrimento acabe.