No dia em que entrei pela primeira vez no bloco operatório tive que impor a minha opinião de uma forma que não é frequente: “É da perna. Vocês vão ter que lhe cortar a perna.”, disse eu com firmeza. Nem tivemos tempo para perceber bem o que tinha acontecido, um homem grande e gordo na ordem dos 30 anos, vindo directamente das linhas da frente em Mosul a sangrar por vários sítios, com o corpo todo cheio de estilhaços e com a coxa e a perna esquerda desfeitas, com várias fracturas e vários esfacelos sangrantes. O homem foi carregado pelo bloco operatório adentro em urgência máxima.
É algo estranho trabalharmos em situações de stress com pessoas que não conhecemos. As equipas cirúrgicas nestas missões sofrem um grande desgaste, têm uma rotatividade grande, e como tal de um momento para o outro damos por nós a trocar impressões sobre salvar ou deixar morrer, com pessoas que nem conhecemos os nomes, nem sabemos de que país vêm ou se falam bem inglês. Isto vai contra todas as regras de segurança, mas as circunstâncias e a urgência dos momentos fazem-nos ter que aprender a encaixar uns nos outros em andamento, e a alta velocidade. Eu não sei se os outros médicos são bons ou maus, ou bons nisto e maus naquilo, e eles nada sabem sobre mim. Mas as vidas dos doentes dependem destes encaixes, mais ou menos atabalhoados, que podem correr muito bem ou muito mal, até porque os médicos de uma forma geral têm um ego difícil de gerir.
Os corpos cheios de estilhaços são uma visão do inferno e ao mesmo tempo um enorme desafio para quem tem que rapidamente parar a hemorragia, como era o caso. Se há coisa que eu tenho poucas dúvidas e consigo aferir em segundos é a quantidade de sangue que o doente perdeu, e por consequência quanto tempo temos para o “segurar”. Este homem estava a morrer. Estava inconsciente, com a frequência cardíaca e respiratória muito alta, e a tensão arterial já a começar a baixar, a entrar num ponto sem retorno muito rapidamente. Havia dúvidas se tinha lesões sangrantes no tórax e no abdómen, e um dos cirurgiões preparava-se para lhe abrir o abdómen. Eu peguei no ecógrafo e afirmei que íamos perder tempo, do tórax e do abdómen não estava a sangrar, e eu senti que tinha que marcar o ritmo empurrando para uma decisão cirúrgica: “É da perna. Vocês vão ter que lhe cortar a perna!” Rapidamente consegui que acreditassem em mim, e não fossem perder tempo a abrir o abdómen, o que só tornou mais difícil que aceitassem que não tinham tempo de lhe estancar a hemorragia da coxa e da perna, sem que avançassem para a amputação.
São momentos tensos, críticos para o doente, e que se passam entre pessoas que acabaram de se conhecer, vindas de países diferentes. Eu estou muito confiante que é da perna e só da perna, o que me leva a crer que, se ele perdeu tanto sangue como eu aferia que perdera em tão pouco tempo, então iria perder outro tanto na tentativa de lhe salvarem a perna, o que trabalhando naquelas condições na minha leitura seria a sua morte. Hesitaram, resmungaram, provavelmente insultaram-me baixinho, e avançaram para o controlo da hemorragia da coxa e da perna, ainda na esperança que pudessem evitar a amputação. Mas ao descomprimir alguns compartimentos da coxa de músculos totalmente destruídos vão se inclinando para a decisão de o amputar, e amputam-lhe pela raiz da coxa que é uma amputação muito alta. Umas quantas transfusões de sangue, e salvamos a vida ao homem. E pode-se dizer que a dúvida fica para sempre ou pelo menos nas cabeças das pessoas que se questionam. Será que lhe podíamos ter salvo a perna? Será que teria morrido se os cirurgiões tivessem perdido muito tempo a tentar? Nunca saberemos o rumo da nossa vida, se tivéssemos feito diferente. Embrulhámos as convicções fortes de cada um, e as decisões foram tomadas. Uma coisa é certa, ganhámos confiança, ganhámos uma equipa. Comunicámos, partilhámos as diferentes interpretações, e agimos com determinação e rapidez no que acreditamos ser o melhor para o doente. E isto viria a ser fundamental para as inúmeras batalhas que travamos juntos.
Mosul foi a batalha mais cruel, e mais sangrenta de que há memória, foi o ângulo morto da humanidade. O que nós testemunhamos, eu nunca mais vou esquecer.
Quase todos os dias tínhamos casos extremos, quase todos os dias salvávamos pessoas no limite, e quase todos os dias perdíamos doentes à nossa frente. Mas houve um rapazinho que escreveu uma grande página da história da minha vida.
Chego ao serviço de urgência para ver um rapazinho. O meu coração começa logo a bater mais rápido. Há algo que me diz que ele precisa de toda a minha atenção. À vista desarmada não aparenta ter nada de especial. Não se vê muito sangue, nem tem nada de partido, está consciente sob o olhar atento do pai. Tem cara de assustado, mas o que me preocupa é que se mexe pouco e tem um ar macilento. Tem duas ou três portas de entrada punctiformes de estilhaços que quase passam desapercebidas, e tem muita dor à palpação do abdómen. Os sinais vitais estão bem, não parece ter perdido muito sangue. Pego no ecógrafo e procuro toda a informação que me possa ser útil e devo ter sido transparente na minha expressão facial de preocupação, porque o pai passou a fixar-me o olhar ininterruptamente. Se quando partilhamos a mesma língua a situação já é desconfortável, quando há uma barreira linguística gigante a situação ainda é mais estranha. O rapazinho tem 9 anos, teve o azar de ter sido perfurado por estilhaços de uma explosão e tem sangue no abdómen. Vou chamar os cirurgiões. Eram dois cirurgiões excelentes. Uma cirurgiã brasileira e um italiano. Partilho com eles o que eu vi, e decidimos levá-lo ao bloco operatório. Peço a um enfermeiro iraquiano que me ajude a explicar ao pai, o que se está a passar e o seu consentimento informado. É incrível a forma como confiam em nós. É provavelmente o desespero que os leva a uma confiança cega. Passados 3 anos de ocupação pelo Estado Islâmico, a guerra atira-lhe o filho para uma maca. Eu pergunto-me o que se estará a passar na cabeça deste senhor? Gente que fala outras línguas, de outras religiões, practicamente de outro planeta, e no entanto, ele confia cegamente. Ele cruza o seu olhar com o meu sem dizer nada, mas na profundidade do seu olhar está um “eu confio em ti”, e eu tento retribuir agradecendo a honra da confiança, e a certeza que todos daremos o nosso melhor. Partimos para o bloco.
A máquina está bem oleada, e os iraquianos são muito bons a trabalhar. O bloco está pronto, as transfusões de sangue a ser preparadas, e o rapazinho cada vez mais assustado, mas nunca chorou. É ao não chorar que vemos no património de gestão emocional algo de extremamente diferente ao que nós estamos habituados. Quantas explosões não terá visto este miúdo? Quantas pessoas a morrer à sua frente não deve ter presenciado? E quantos não seriam da sua família?
Eu anestesio-o, ponho-lhe o tubo na traqueia e ligo o ventilador. Até aqui tudo tranquilo. Quando os cirurgiões lhe abrem a barriga, os sinais vitais alteram-se num sobressalto. A frequência cardíaca a aumentar e a tensão arterial a descer vertiginosamente. O clima na sala fica tenso. Eu partilho a informação com a cirurgiã brasileira, muito experiente em trauma, que se atira para dentro da barriga do menino para lhe parar a hemorragia. Eu só a ouço a dizer… “eu não vejo nada, não vejo nada a sangrar…”, e depois uma pausa… e ouço “retro-peitoneu”… e eu senti um arrepio na espinha de alto a baixo, enquanto revia o olhar do pai que confiava em nós. O retro-peritoneu é uma zona do nosso corpo entre a cavidade abdominal (que se limita por uma membrana que se chama peritoneu) e a coluna vertebral, aqui passam grandes vazos como a artéria aorta, a veia cava inferior e alguns dos seus ramos e alguns órgãos. É frequente com lesões do retro-peritoneu ter uma estabilidade aparente, e depois quando é retirada a pressão abdominal que estava a tamponar a hemorragia, o doente começa a sangrar profusamente, e eu já perdi muitos doentes nesta fase.
Do meu lado da Anestesia, além de um enfermeiro iraquiano que me estava a ajudar e que é super expedito, entra na sala o Alex, que é também Anestesista. O Alex é canadiano, um pouco mais novo do que eu, um companheiro espetacular e um excelente Anestesista, e quando acabou a cirurgia do seu bloco e percebeu que na minha sala a situação estava a arder veio logo ajudar-me cheio de proactividade : “O que é que precisas?” … e eu ia pensando em voz alta para que soubessem o que eu estava a fazer e o que eu precisava que me fizessem… “Eu vou pôr um cateter na veia jugular, mas precisamos de mais dois cateteres venosos… precisamos de mais fluidos, e mais sangue… precisamos de cálcio… preciso que alguém prepare adrenalina… quero 5 ampolas de adrenalina em 50mL de soro fisiológico… quero um perfusor pediátrico para a adrenalina… quero que alguém desligue o ar condicionado, é preciso aquecer a sala…” … são segundos, são minutos de uma intensidade indescritível, com a banda sonora dos bips do monitor que nos vão dando a indicação de que ele está a perder mais sangue… O Alex diz-me “tens aqui a adrenalina”, e eu inicio a perfusão de uma forma rudimentar a contar as gotas para uma velocidade que tem que ser minuciosamente controlada. Só se vê transfusões de sangue, e soros, e medicamentos, e agora a adrenalina que tem um efeito imediato a subir a tensão arterial que estava quase imensurável… nós estamos a dar tudo por tudo, mas sabemos que o rapazinho está quase a morrer… Entretanto a cirurgiã abriu o retro-peritoneu e no meio de golfadas de sangue, identifica a hemorragia que vinha da Veia Cava Inferior, a maior veia do nosso corpo, e ela com enorme perícia, rapidez e experiência finalmente solta as palavras mágicas “já clampei a veia…” E eu olho para o monitor e pensei… “ok, está vivo, vamos acreditar…” respirei de alívio e congratulei silenciosamente a cirurgiã pela sua estupenda eficácia… mas claro, luta ainda agora começou.
É preciso estabilizar o doente do meu lado, e é preciso que a cirurgiã suture a veia perfurada pelo estilhaço que é uma cirurgia delicada, exigente e com o acréscimo de dificuldade de ser numa criança ainda pequena. Muitas transfusões, muitos fluidos e uma dose alta de adrenalina começam agora a normalizar os sinais vitais e o rapazinho encaminha-se para uma zona de normalidade e estabilidade, ainda estando num estado muito crítico. Enquanto troco uma transfusão de sangue, mudo um soro, e dou mais outro medicamento, a minha atenção e a do Alex é levada pela mudança de padrão dos Bips da frequência cardíaca. Os Anestesistas têm uma sensibilidade para os diferentes sons dos monitores apuradíssima. E ao olhar para o monitor, juntamente com o Alex, começamos a ver alterações na frequência cardíaca bizarras, e alterações na forma do electrocardiograma que eram altamente preocupantes. Os Bips estavam cada vez mais anárquicos e nós perguntávamos um para o outro “O que é que se está a passar? … ele parou de sangrar e até estava a ficar mais estável…” … E quando aparece o valor da tensão arterial no monitor que estava programada para cada 3 minutos, e vemos um valor elevadíssimo, dissemos os dois: “a adrenalina!”… Eu de imediato paro a perfusão da adrenalina rodando a roldana da perfusão, mas fico com o coração nas mãos ao ver a forma errática como se comportava o electrocardiograma do rapazinho, que ameaça seriamente a paragem cardíaca, enquanto os meus pensamentos são invadidos por “tu mataste o menino”… “o pai confiou em ti, e olha o que fizeste!”…
Progressivamente o ritmo cardíaco e a configuração do ECG regressam à normalidade, e eu começo a tirar as estacas do meu coração… Ele está bem, ou pelo menos está onde estava. Com o Alex, eu revi todos os passos desse momento crítico, e o erro foi meu. Enquanto mexia em diferentes perfusões ao mesmo tempo que se cruzavam à minha frente, eu abri a da adrenalina pensando que era a do soro. A adrenalina entrou por segundos a uma velocidade muito rápida… Eu cometi um erro, que podia ter sido fatal.
A equipa confiou em mim, e o pai do menino confiou em mim, e eu quase que o matei por um erro. A cirurgia chegou ao fim, e apesar de nos ter dado, ainda mais uns dias de muito trabalho e atenção, este rapazinho saiu do hospital de mão dada ao pai, perfeitamente recuperado. No fundo, no fundo acaba por ser um caso de sucesso, mas podia ter sido o maior trauma da minha vida. Milhares de crianças morreram na guerra do norte do Iraque, mas se esta morresse não seria apenas mais uma, seria provavelmente a morte da minha auto-confiança no exercício da medicina.
Eu confio em mim. Confio pelo menos nas minhas intenções. Confio no olhar terno e meigo daquele pai que confiou em mim, confio no futuro do Iraque, confio no trabalho dos Médicos Sem Fronteiras, e confio que de dia para dia o mundo vai para melhor.
Todos nós vamos levar muitos abanões na nossa confiança, alguns vão nos levar a querer desistir, mas ser feliz não é viver sem traumas, sem tristezas e sem erros, ser feliz é acordar de manhã todos os dias com vontade de lutar.
Quanto mais nos expomos ao risco, maior é a probabilidade de falhar e cair de costas. E quanto mais falhamos mais temos que cultivar a nossa confiança. Os erros fazem parte do caminho, mas o caminho nunca é um erro, se este for feito com bondade. É preciso confiar em nós e no mundo que está cheio de coisas bonitas.
É preciso confiança.
???.
Bem haja Dr. Gustavo.
Obrigada pela partilha!*
???
Uau ? só erra quem tenta
Só podemos acreditar num mundo melhor graças aos errantes
Muito obrigada ?
Uff nem respirei a ler… É preciso confiança e saber que há gente boa dá nos um pouco mais de confiança neste mundo complexo. Bem haja Gustavo ?
Muito obrigada Doutor Gustavo
Por tudo que faz, por tudo que escreve, por ser a PESSOA que é .
????
“Todos nós vamos levar muitos abanões na nossa confiança, alguns vão nos levar a querer desistir, mas ser feliz não é viver sem traumas, sem tristezas e sem erros, ser feliz é acordar de manhã todos os dias com vontade de lutar.”
Muito obrigada Dr. Gustavo por partilhar connosco estas vivências que nos obrigam a refletir. Bem haja.