O difícil está no continuar. No início ouviam-se palmas, vestiam-nos capas de super-heróis e enchiam-nos a barriga de coisas boas e boa energia. No início, o entusiasmo, a adrenalina e os olhos do mundo postos em nós, empurravam-nos para um sentimento de invencibilidade. O início era sexy, o difícil está no continuar.
Lembro-me da minha primeira missão em que dezenas e dezenas de amigos e familiares se despediram- de mim para partir para as profundezas do Congo há 11 anos atrás. Na minha última partida há uns meses atrás estava sozinho no abraço que dei à minha mãe no aeroporto, para mergulhar no Sudão do Sul. Começar foi especial, talvez até mais bonito pela virgindade de tantas emoções, mas o difícil é continuar. E o continuar vem da persistência, da consistência e até da teimosia de ser fiel ao sentimento que nos fez arrancar. Esse é o grande desafio, lembrarmo-nos do 1º dia. E sermos fieis a esse sentimento. E continuar…
Em Março de 2011 começou a guerra da Síria, e o mundo enfureceu-se com tantas mortes. A guerra continuou, mas as nossas atenções, palavras e acções foram-se perdendo. Terramoto do Haiti, guerra do Iémen, ciclone Idaí, guerra do Congo, Líbia, Afeganistão, Rep. Centro-Africana, etc, etc… o difícil é manter o coração onde já não há atenção e a exigência mantêm-se.
Infelizmente o SARS-Coronavirus-2, manter-se-á entre nós durante algum tempo, não vai desaparecer por “milagre”. E a exigência nos hospitais pode até aumentar. Já sem palmas, sem bolinhos e sem capas os profissionais de saúde vão ter de continuar com o coração onde já não há atenção.
Quando o país reabrir, porque é inevitável que reabra, vão ter que estar preparados para a segunda vaga, vão ter que assumir que as férias são apenas para os “outros”, vão ter de prolongar a dureza do afastamento das suas famílias, vão ter que continuar a trabalhar com medo da sua saúde e dos seus. Sem holofotes, vão ter que continuar…
A solidariedade vai ter que continuar. Se a realidade depende do ângulo e da perspectiva pela qual a vemos, do ponto de vista de quem arregaçou as mangas para ajudar os mais fracos, esta catástrofe humanitária consegue mostrar-nos rara beleza. É incrível ver como pequenas e grandes organizações arrancaram ou reforçaram a sua acção social de proximidade com alma, com energia, com criatividade e com um coração gigante, organizados ou até desorganizados, têm feito pura magia, aproximando as pessoas mais frágeis num mundo que se prevê mais distante. Mas o difícil não é agora, o difícil é continuar…
Os hospitais estão mais frágeis e vão ser mais importantes do que nunca. O planeta está mais pobre, a fome no mundo duplicou, o desemprego em Portugal duplicará (ou mais), e mais do que nunca precisamos de olhar de frente a realidade à nossa volta, com coragem, determinação, humor e humanidade, e assim, escrever num papel a melhor versão de nós próprios, fieis ao melhor dos nossos sentimentos, e continuar.
Arrancar é fundamental, mas o difícil está no continuar.
Este é o maior desafio das nossas vidas. Mostremos carácter.
Ouvi numa reportagem que no hospital de S. João há um serviço (talvez neurocirurgia) que consegue “desligar” a zona do cérebro que nos faz sentir a dor. O Dr. provavelmente já sabe disso, uma vez que lá trabalha, mas quem sabe… eu queria tanto, tanto, ter o poder de o ajudar a tirar a sua dor! Desculpe a minha ousadia e se estou a ser inconveniente.