É obrigatório ver “Human Flow”, de Ai Weiwei, por Matilde Gomes
Our shouting is louder than our actions,
Our swords are taller than us.
This is our tragedy.
Nizzar Quabbani, Poeta sírio
Ai Weiwei merece um beijinho na testa. Foi este o pensamento intrusivo que fui tendo enquanto assisti ao excecional “Human Flow”. É um trabalho extraordinário do aclamado artista e ativista chinês, digo-o à boca cheia, porque quando as imagens se apagaram só fui capaz de manter um olhar vazio, de profunda incapacidade para gerir tanto pensamento, tanta emoção, tanta comoção. Tanta revolta e tanto amor no mesmo momento – é um sentimento ainda não descrito, ainda sem nome, aquele que este documentário provoca.
Ai Weiwei visitou campos de refugiados em vinte e três países dispersos pelo mundo, com uma intenção claramente expositiva e crítica, que obriga o público a ter vergonha da sua própria passividade, ignorância e indiferença. É impossível digerir a dureza dos olhares que Ai Weiwei nos apresenta, de pessoas aprisionadas – literalmente – numa infinita dúvida de futuro. É particularmente violento assistir ao olhar de crianças que absorvem o mundo num campo de refugiados, como se a vida humana fosse uma permanente estagnação; fosse viver em barracas ou tendas de campismo onde tudo é lama quando chove; fosse comer depois de duas horas numa fila onde associações humanitárias distribuem uma sopa; fosse não ter higiene, não ter cama, não saber ler; fosse viver empacotado num arrumo para onde se atiram vidas indesejadas, das quais ninguém quer saber. Que adultos serão estas crianças? Que humanidade é esta? – perguntamos nós, expectadores, e pergunta-nos certamente Ai Weiwei.
O maior foco é depositado na Europa, que se diz de valores humanitários e que apenas 70 anos após a II Guerra Mundial volta a cercar pessoas estrangeiras de arame farpado. Não é isto xenofobia? Comparar campos de refugiados com campos de concentração é sempre forçado e de grosso modo injusto, mas atentemos às semelhanças: a privação de direitos, a negação da dignidade, a desnutrição, as doenças infeciosas que se propagam, o aglomerado populacional de todas as idades – vidas como as nossas – despojadas de qualquer significado. Pessoas magoadas por guerras, por perdas, pela pobreza, que se deslocam com perspetivas de encontrar asilo, ajuda e paz. “A migração é um direito” – ilumina o documentário a certa altura. Que patriotismo fragmentador é este que leva os dirigentes políticos, e grande parte das próprias populações, a negar o acesso de um pedaço de terra a outros seres humanos?
Ai Weiwei não deixa de lembrar as consequências globais desta crise: todos aqueles que se mantêm alheios a este problema, que se julgam independentes e imunes – e que só se preocuparão quando ele se tornar um problema pessoal – podem considerar-se avisados para o enorme risco de radicalização destes milhares de crianças e jovens. Crianças maltratadas por um conjunto de falhas políticas, sem acesso a cuidados básicos, sem acesso a educação, que crescem com guerras, sofrimento e limitações como background. Que valor darão à vida estas crianças, quando ninguém lhes deu importância? Não se subestime o poder horroroso desta máquina de guerra. E que ninguém culpe esses futuros bombistas por não terem recebido amor.
A mestria deste documentário não está em nada do que expus até agora, ainda que tudo seja de imenso valor. Acredito que qualquer ativista com vontade de fazer um filme poderia visitar vinte e três países para denunciar a desumanização deste século (para tantos ainda invisível), a catástrofe da indiferença, a magnitude dos números aos quais o público é tantas vezes insensível. Eu diria que a mestria está no próprio Ai Weiwei, na genialidade estética, no cunho artístico que ele coloca tanto ao nível da fotografia (absolutamente arrebatadora) como ao nível da expressão literária. O filme é deliciosamente adornado com segmentos de poemas como aquele com que abri este texto (na maioria da autoria de poetas do médio oriente), e é esse contraste – entre o sublime da capacidade humana e a nulidade da sobrevivência num campo de concentração – que provoca sentimentos tão paradoxais de incompreensão e de redenção.