Por vezes tenho dias muito maus. Há dias que bate uma saudade tão forte, tão forte que só me apetece chorar até desidratar. Saudades de casa, saudades da família, saudades dos amigos, saudades do meu Porto, saudades do amor perdido, saudades dos meus cães, saudades que asfixiam porque a distância vai muito para além dos quilómetros que nos distanciam… E a juntar a isso a dor e a frustração dos que nos morrem nas mão, aos porquês e outras questões que nos sufocam… Os ecos da violência, aldeias queimadas com as pessoas lá dentro, a violência sexual indiscriminada, as histórias das crianças-soldado… Tudo isto por vezes parece que ultrapassa o humanamente dirigível, e há dias que nos atira ao tapete e em que nos parece não haver força para levantar…
Mas há dias bons, pequenas conquistas que nos deixam a alma a sorrir e depois há dias incríveis em que sentimos uma força inabalável que nos leva a crer que podemos conquistar o mundo. E este foi um desses dias…
As gravidezes nesta zona do planeta não são vigiadas, e como tal são úteros-surpresa ambulantes que se passeiam por todo o país… Não se sabe se é rapaz ou rapariga, se é ou um ou se são dois, não se sabe nada da futura vida que aí vem… há apenas a esperança que tenha vida.
Na maternidade de Bangui onde as mulheres só nos chegavam em trabalho de parto, era o momento de se ver o que lá dentro se passava. Todas as mulheres eram examinadas clinicamente e ecograficamente, para salvaguarda das mulheres e das crianças a vir.
Neste dia houve uma palavra que foi ganhando forma, e que se espalhou pelos corredores como o vento: “triplete, triplete, triplete”… Uma gravidez trigemelar e três rapazinhos em boa saúde in útero levantaram a moral da equipa e abriram os sorrisos a todos que dia-a-dia põe a funcionar a principal maternidade da Rep. Centro-Africana.
O milagre da vida exponenciado à terceira casa.
Todo o hospital se pôs em sentido. O bloco operatório preparou-se ao detalhe para uma cesariana com cuidados especiais, e a neonatologia aproveitou para olear a máquina ao pôr em prática tudo o que é necessário para o acolhimento do recém-nascido e a prontidão para uma eventual ressuscitação, em material, em recursos humanos e em alerta máximo vezes 3… Para mim como anestesista não muda grande coisa, a mãe está bem de saúde, e assegurar uma boa perfusão de 1 ou 3 placentas durante o procedimento anestésico-cirurgico é igual… O que muda é a poesia que sinto no coração e claro a prontidão total para ajudar numa qualquer reanimação do recém-nascido caso seja necessário…
47, 48 e 49 foram minutos muito especiais daquelas 11 horas, daquela manhã… Tudo correu às mil maravilhas… Antecipação e preparação ao detalhe, anestesia “espinhal” sem intercorrências, cesariana suave e sem complicações romperam a barriga da mãe 3 cidadãos do mundo, centro-africanos em plena saúde, a chorar pela vontade de uma vida boa, como todos gostamos de ouvir…
Secados, estimulados, registo de Apgar feito, gorro na cabeça e embrulhados num lençol saíram um a um para longe dos meus olhos, mas até hoje estão no meu coração…
São símbolos, são ícones, são momentos que se eternizam no lado bom do nosso coração, depois de ver tantos nados-mortos ou pior, quando nos morrem nas mãos os bebés ou as mães… E este dia foi um mar de boas energias, um passeio pelas nuvens que nos faz acreditar que a vida é bela…
Acreditar também que estes 3 rapazinhos possam crescer com o mesmo carinho que todos que se esforçam para que esta medicina humanitária seja uma realidade, depositam seja em que medida for… dadores, observadores atentos ou trabalhadores no terreno. O que importa é acreditar que é por aqui que se vai…
Acreditar que eles possam ser o futuro deste país, desta África, e deste mundo, e que vejam um mundo melhor do que o mundo que os viu nascer…
Nesta zona do planeta não existe a preocupação de quanto custa o infantário, ou as actividades extra-escolares, mas alimentar 3 é uma surpresa económica que assusta qualquer pai de família, e isso ficou bem espelhado nos olhos deste pai ao triplo. A alegria e o entusiasmo de toda a equipa levou-nos a fazer aquilo que raramente se faz, pois é preciso saber bem o nosso posicionamento, e assim juntamo-nos para fazer uma generosa dádiva de roupas de vários tamanhos vezes 3, e uma soma considerável de leite e dinheiro para a alimentação destes 3 símbolos de esperança.
E foi com um aperto no coração e uma lágrima no canto do olho que vimos sair do hospital mãe e pai de sorrisos consolidados e 3 bebés deliciosos, que deram um sentido especial às nossas vidas e aos nossos esforços do dia a dia.
Mesmo no meio de tanta tristeza, se olharmos com atenção…. a vida é bela.