9. Pátria Perdida (1)

Várias vezes éramos sobrevoados. E dificilmente imagino situação mais assustadora. Num segundo, o pânico domina-nos por completo. O som dos aviões a rasgar os céus transforma o nosso estado de espirito num click… Os primeiros a ouvir estas máquinas de guerra saíam a gritar por todo o hospital: “MIG, MIG, MIG!!” lançando o alerta para recolher ao bunker… mas bem pior é quando são helicópteros… é muito mais intenso e assustador… o som é ensurdecedor, a percepção de proximidade das nossas cabeças é muito maior, e o tempo que demora parece infinito… São segundos que parecem horas de medo e inquietação. “Será que é em cima de nós que este piloto vai largar o seu terror?”… é o pensamento que me domina. Penso muitas vezes sobre o que se passará na cabeça destes pilotos, que ao carregar no botão deixam rios de sangue e sofrimento… Como será a sensação de ver e ouvir o seu próprio povo a ser esmagado e esquartejado, em directo ao vivo e a cores, consequência directa e imediata das suas acções… Apontamos sempre o dedo aos decisores superiores… Mas será mais culpado o que dá a ordem ou o que prime o gatilho?

Num dia em que estávamos algures nos corredores gélidos do hospital somos invadidos pelo som das hélices de um helicóptero!…. É agoniante… O nosso cérebro congela de medo e agimos por automatismo… Recolhemos todos ao bunker largando tudo o que estamos a fazer (desde que não seja de vida ou de morte; vezes houve que fiquei no bloco operatório numa decisão consciente de não deixar o doente morrer) e ajudamos todos os doentes que conseguem deambular a entrar na porta estreitinha do bunker… inclusive mulheres em trabalho de parto, aos gritos de dor pelas contracções, vão entrando a custo neste bunker, que é um corredor de paredes reforçadas, gélido, húmido e quase sem luz… E é neste buraco negro que imagino se será naquele dia que aquele homem dentro do cockpit do helicóptero decidirá deixar cair as suas bombas em cima das nossas cabeças… Entenda-se que a ida para o bunker é apenas uma questão probabilística… Diminui em alguma medida o risco… mas, se formos bombardeados directamente, de nada nos serve.

Ficamos dentro do bunker alguns minutos… desconhecemos por completo quais as intenções deste pássaro maldoso… e vamos ouvindo o afastar e aproximar do barulho, até que começamos a ouvir as bombas a cair! Caem mais perto do que qualquer um gostaria, mas longe o suficiente para sabermos que não eram para nós… O estrondo é brutal, e sentimos a vibração do chão a tremer… Pela intensidade do som conseguimos mais ou menos aferir a que distância de nós foram largadas estas bombas… e quanto tempo demorarão a chegar os feridos destes ataques impiedosos… E assim foi… à medida que deixamos de ouvir o helicóptero, vamos saindo do bunker e começamos a preparar-nos para receber um grande número de feridos… e cerca de 20 minutos depois começam a chegar… as bombas caíram a cinco quilómetros de nós, numa vila onde a maioria do nosso staff vivia…

Nunca se está preparado para isto, embora já tenha vivido algumas situações desta intensidade, é sempre difícil… é uma situação de catástrofe pura e dura! O hospital começa a ser invadido por feridos ensanguentados e cheios de pó das casas destruídas… Os gritos tornam-se a banda sonora deste filme de terror… O staff sírio do hospital, ainda que tenha visto mais vezes este tipo de situações do que eu, está em pânico… É o seu povo, a sua gente, alguns até seus conhecidos…. e absorvem cada palavra do seu sofrimento. Eu sou “protegido” por não compreender árabe e talvez também por algumas características que me são inatas, em termos da frieza com que consigo gerir as minhas emoções no imediato… Eu sinto-me uma máquina desprovida de emoções… Neste tipo de situações temos de tomar decisões difíceis… e o pior são os casos que, pela gravidade e complexidade das lesões, não vamos sequer tentar tratar… ou seja, vamos literalmente deixar morrer pessoas que ainda estão vivas, mas que consideramos ser demasiado tarde… O lema é salvar o maior número de vidas, e como só temos uma equipa cirúrgica, apostar tudo num doente demasiado grave pode significar perder três cuja vida conseguiríamos salvar… Explicar este raciocínio a quem não tem o mesmo treino clínico é muito difícil, e totalmente impossível de o explicar aos familiares dos doentes que gritam desesperados… Não há palavras para descrever a intensidade emotiva destes momentos, mais ainda quando há homens com armas dentro do hospital a tentar pressionar as nossas decisões… Mas eu sinto-me uma máquina, frio como uma pedra…. muito calmo… e a tentar passar essa calma que é vital para estas situações de stress… Nunca corro, não falo alto… sou assertivo mas sem gritar… e sempre que posso olho todo o staff médico nos olhos e digo: “tenham calma”….

A arte do diagnóstico aqui passa para segundo plano, a primeira prioridade é estabelecer o nível de gravidade de cada doente… fazer a triagem… Eu não tomo nenhuma decisão sem ver todos os doentes que vão chegando… E friamente quero ter um overview da situação antes de ir para a acção propriamente dita… Há uma certa tentação de ir para o bloco operatório com o primeiro que terá indicação… mas temos que inibir esse instinto… Quando tudo à minha volta parece estar a andar em fast forward, eu tenho que lentificar o meu pensamento e não deixar entrar as emoções… A primeira decisão é muito triste, mas fácil em termos clínicos…. deixo morrer dois doentes… não tenho dúvidas que o esforço seria infrutífero, mas claro num cenário em que não tivesse mais nenhum, iria tentar salvar um deles… mas não é o caso. Ao comunicar a decisão ao staff sírio que está à volta deles, sinto alguns olhares acusatórios de quem quer dar tudo por todos…. é normal, mas eu tenho que sobreviver também a esses olhares para poder gerir esta situação tentando salvar o máximo de doentes possível… Não errei, os dois morrem em minutos…seria inevitável….  O “possível” aqui é uma palavra-chave… que varia imenso com diversos factores: o meu raciocínio clínico, o número de vítimas, os nossos recursos e as alternativas possíveis (por exemplo, transferir para outros hospitais).

A segunda decisão é bem mais difícil…. o terceiro doente a merecer a minha atenção está inconsciente por um Traumatismo Crânio-Encefálico (TCE) grave (Glasgow 6-7). Eu, para fazer tudo o que tenho a fazer por ele, implica algum tempo e depois transferi-lo para a Turquia… Vou fazer um ponto da situação dos outros doentes que precisarão de tratamento cirúrgico e da sua gravidade… Juntamente com o cirurgião que era fantástico a todos os níveis, concluímos que eu devia tentar salvar este homem com o TCE… ou seja, que a uma ou duas horas que eu iria estar sem poder ir ao bloco não seriam cruciais para os três ou quatro doentes que planeávamos levar ao bloco… E se não fizesse nada por este homem ele iria por certo morrer…

Este é o momento em que eu arregaço as mangas e me atiro para cima deste doente…. Tenho de me certificar que não há mais nenhuma outra lesão grave além do TCE, e não há. Para fazer o que tem de ser feito este doente precisa de TAC, Neurocirurgia e Cuidados Intensivos… três coisas que nós não temos e por isso tenho que o transferir para a Turquia… que é uma pequena aventura… O que eu posso fazer por ele é tentar minimizar os danos cerebrais, induzindo a anestesia geral e para isso tenho que o ventilar artificialmente com um tubo na traqueia… Isto é o ABC para um Anestesista, e o dia-a-dia de um Intensivista… e, como tal, esta é a parte mecânica que faço com naturalidade… O problema é que os 20 a 30 minutos até à fronteira com a Turquia são também cruciais… e assim eu tenho de ir na ambulância… pois esta responsabilidade de gerir anestésicos gerais, relaxantes musculares e ventilação artificial, eu não a posso passar a ninguém… A minha chefe autoriza, fazem-se os contactos com os serviços de emergência turcos para um médico estar na fronteira para receber o doente e eu preparo-me com o tradutor para esta curta, mas perigosa viagem…

Nestes preparativos, lembro-me da importância de pôr a família do doente a par da situação… até porque ninguém pode passar a fronteira a não ser o doente… e a família pode ficar sem saber nada dele durante muito tempo… Pergunto quem é, e descubro o pai no meio da multidão que está fora do hospital… Faço o senhor entrar para conversar com um pouco de privacidade… Este senhor já tem uma certa idade, um fácies sofrido e também ele coberto de pó dos pés à cabeça… Percebo que estava na mesma casa que o filho aquando dos bombardeamentos… mas teve a sorte de não ter sido atingido pelas explosões… Toda esta conversa é feita com um tradutor, pois eu não falo árabe e o senhor não fala inglês… o senhor está ao meu lado, mas não olha para mim, pois para ele a conversa vem apenas do tradutor e eu fico como que um narrador ou observador… Tento explicar o que se está a passar, o porquê de ir para a Turquia, que o filho tem um TCE grave … e sou transparente no que diz respeito à gravidade/prognóstico (ainda que de uma forma precoce com os dados que tenho) …. digo que há uma grande probabilidade de ele vir a morrer…

O senhor começa a chorar… sem gritos, sem mais nenhuma palavra… naquele choro de quem quer mas não segura as lágrimas que lhe caem pela cara… e eu choro ali à frente dele também… talvez porque me sinto um observador da conversa e não dentro dela… Já dei más noticias centenas de vezes na minha vida profissional e nunca tinha chorado… mas naquele momento não aguentei! Naquelas lágrimas eu não vi só um pai que perdia um filho… vi um povo que perdia a sua amada pátria…. a esvair-se em sangue….

(continua)  

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