9. Pão e Laranjas

Há qualquer coisa de mágico sobre o Afeganistão… Todos os países têm o BI do seu povo e da sua terra, e o do Afeganistão é bem forte… Localizado numa fronteira entre mundos, sempre foi a terra dos Afegãos… Gente de carácter vincado, sólido e inspirador… Triste é que aos olhos de quase todo o mundo se trata apenas de um campo de batalha… quando é tão mais do que isso…

Não fui à procura de mais do que o óbvio, a sua história e o seu povo, que por acaso habitam num país lindíssimo…

A sua História intercepta quase todos os grandes capítulos e civilizações da Humanidade… Rota da seda, a ligação do médio-oriente ao extremo-oriente, o tampão entre a Rússia e o sub-continente Indiano…. Passagem de grandes campanhas imperialistas, desde Alexandre, o Grande, Gengis Khan e o Império Mongol, os Árabes Muçulmanos, os Soviéticos, os Britânicos… e, no entanto, nunca deixaram de ser o que são: Afegãos, orgulhosos e fiéis da sua própria língua e identidade, inquebrável ao longo dos tempos…

E esta história é sobre este povo, sobre tudo e sobre nada, sobre pão e laranjas… Sobre as maravilhas de um país que me impressionou e me deixou completamente apaixonado… E por isso gostava que vissem o que eu vi, sentissem o que eu senti e certamente de lá sairiam também maravilhados…

O espírito guerreiro dos Afegãos impressiona… poucas vezes senti que a expressão “antes quebrar que torcer” fizesse mais sentido… E admirava-os por isso. A sua fisionomia não difere muito da dos latinos, morenos mas não escuros, corpos magros, mas ultra-resistentes, parecem ser feitos de uma fibra diferente… Até as poucas vestes que usavam num dos Invernos mais rigorosos que já vi me impressionava… Temperaturas que facilmente baixavam aos -20ºC, não lhes mandava a moral abaixo…. ao ponto de assim andarem de sandálias abertas… Mas esta pose confiante, altiva e destemida era acompanhada na mesma dose de uma doçura e de uma sensibilidade que conquistavam até os mais desatentos… Entre a guerra e a resiliência de quem sabe o que quer e o que não quer, está sempre um sorriso doce e até infantil…. de quem dá todo o seu eu a quem vem por bem… Os braços fortes e corajosos que se abrem para dar o corpo às balas, abrem-se também para dar os abraços mais sentidos que já recebi em toda a minha vida… Um abraço hospitaleiro, onde entre os quatro braços se sente a energia de quem jura pela sua morte que ali residem as boas-vindas… de quem no seu código de honra, depois de deixar entrar alguém na sua vida, ali ficará bem recebido para sempre… Algo de tão bonito e que, infelizmente, não encontro paralelo no nosso mundo ocidental, dito civilizado…

Este código de honra dos Pashtun não tem paralelo e quem o sente, sente-se tocado para todo o sempre… “Tu estás aqui, tu és meu amigo, tu és meu convidado…. Tu ficas em minha casa, tu comes da minha comida…. eu dou a minha vida por ti!”, a isto se tem chamado Pashtunwalli, “o código de vida” ou “a forma de viver dos Pashtun” …. E sentimos tudo isto num abraço, que nos vai conquistando, e nos deixa encantados com o seu modo de vida…

E é entre estes abraços que fazemos a nossa vida… Sempre stressados ao estilo ocidental, a querer fazer tudo e mais alguma coisa para salvar vidas, e pôr o hospital a funcionar com qualidade, as nossas mentes são computadores, sempre em “overload”…. E estes abraços trazem-nos à terra, relembram-nos onde estamos, quem é esta gente, o que é que ela sente, e o que sente por nós… uma admiração e gratidão eternas… por lá estarmos a salvar os seus… Estes abraços fazem-me morrer de saudades do Afeganistão, enquanto prometo a mim mesmo, que se a vida me correr como gostava, um dia hei-de lá voltar…

Os motoristas, os guardas, os cozinheiros, desfaziam-se em sorrisos à proporção da sua falta de inglês, de cada vez que me viam… e mal eles sabem quantas vezes me levantaram a moral, quando me sentia num poço sem fundo… E percebemos que, por trás daquele coração de guerreiro, está quase sempre um homem sensível, que sente e nos sente, e com vontade de nos fazer sentir bem… São sorrisos que nos ensinam, que valem os perigos que corremos, que nos trazem a deliciosa sensação que temos tanto a aprender…. e que, aconteça o que acontecer, é no nosso carácter e na nossa honra que reside a magia da nossa felicidade…

E aprendi também a ser feliz nas pequenas coisas, a cada Xai, a cada conversa, e de cada vez que saboreava aquele que classifico como o melhor pão do mundo! O pão do Afeganistão! O “Naan” (pão em Persa) acompanhava todas as refeições do nosso dia e era absolutamente maravilhoso. De forma oval ou rectangular, bem grosso e estaladiço, era cozido em fornos subterrâneos…. ou seja, buracos no chão, bem fundos, onde a massa do pão era colada à parede profunda, ficando fora da nossa vista…  Sempre que tinha oportunidade (que era raro, dado as nossas restrições de liberdade), contemplava este incrível processo de como fazer este pão… Para muitos dos locais era alimento único… para nós que éramos “ricos”, acompanhava o Keebab (carne), e toda a gastronomia local super rica em especiarias que quase hipnotizam…. Muitas vezes  este pão assumia um formato de prancha de surf, o que me ajudava a sonhar, e a matar saudades do mar… A todas as refeições chegava-nos pão fresco… e fazia as delícias de todos os que, como eu, nunca tinham provado um pão tão maravilhoso….

E as laranjas? Falta-me a arte da descrição para transmitir o que são as laranjas do Afeganistão…. Docíssimas e de casca solta, ideal para os preguiçosos como eu, chegavam-nos ao preço da chuva…. E eram invariavelmente maravilhosas… Não sei se a incrível amplitude térmica daquele país propicia o crescimento desta fruta com uma qualidade, para mim sem paralelo… O que é facto, é que adocicou a minha estadia e de que maneira, num país e numa região envoltos numa guerra terrível e numa dura realidade…

Viver sem poder sair de casa é duríssimo, sentir que há um país e um povo fantástico a toda a nossa volta e nós quase sempre rodeados por quatro paredes é triste… e o pouco que vi da cidade onde vivia (Lashkar Gah), foram as três rotas diferentes que fazíamos de carro, alternadas para que os nossos trajectos não fossem previsíveis…. evitando potenciais ataques… Mas dentro de todas estas adversidades os pedaços de Afeganistão que nos chegavam, foram suficientes para ficar apaixonado para sempre por este país…

E a magia da vida está nas pequenas coisas… nos sabores, nos sorrisos, nos olhares e nos abraços… E nos abraços de despedida, no dia em que me vim embora, senti uma amizade e uma gratidão eterna, que gravei na minha memória até hoje… Foram muitos, mas houve um que me marcou em particular. Questões burocráticas com o visto, fizeram-me ter de regressar a Kabul uns dias mais cedo do que pensava… E no dia em que me despedi do hospital onde estive quase três meses, tinha as malas prontas, mas sem saber se havia lugar para mim no avião da Cruz Vermelha que me levaria a Kabul. E por isso não houve lugar a despedidas nem dos meus companheiros expatriados, nem da minha maravilhosa equipa de afegãos… Quando tive a confirmação que ia embora, triste e já nostálgico, engoli em seco e rapidamente percorri o hospital para me despedir de quem encontrei, com fortes e sentidos abraços…. alguns ficaram por dar, principalmente de alguns enfermeiros que trabalhavam comigo no bloco operatório… Uma roleta-russa de emoções… quando encontro o Dr. Nasrullah, o chefe de serviço da Cirurgia… convivemos diariamente e nem sempre foi fácil… Dr. Nasrullah ao seu estilo de ditador, liderava todos os acontecimentos cirúrgicos daquele hospital… e várias vezes choquei com ele, por opiniões médicas discordantes, que me causavam alguma revolta… pois nunca conseguia trazer a discussão ao nível da ciência… e quase sempre vencia a opinião dele, sustentada no “eu sempre fiz assim, quem és tu para me dizer o contrário”….

Eu, educadamente, tinha que partir muita pedra para conseguir pequenos avanços… Trazia livros, imprimia documentos, provava por A + B o estado da arte da Medicina, mas de pouco me valia…. Lembro-me de um dia, a propósito de um adolescente com um traumatismo crânio-encefálico grave, vítima de uma bomba, em que o Dr. Nasrullah insistia em prescrever corticosteroides…. e eu insistia que estavam contra-indicados…. Trocámos opiniões médicas de uma forma acesa, mas ele venceu facilmente esta disputa com o seu estilo austero, irredutível… porque haveria ele de ouvir a opinião de um jovem Anestesista com metade da idade dele?… ele que já viu tanta coisa, tantos anos de guerra… e ali estava firme e hirto… No dia seguinte, eu chego ao hospital cheio de diplomacia e muito humildemente com as guidelines de “Traumatic Brain Injury”…. E mostrei-lhe: “Do you see, according to the international guidelines the corticosteroids are contra-indicated!”…. A resposta dele foi simples: “Not in Afghanistan!” ….. KO fácil… Pese embora estes momentos sejam difíceis de digerir, ia conseguindo pequenas conquistas, com impacto importante para os doentes… Na gestão de antibióticos, na preparação pré-operatória… pequenas/grandes vitórias…. Mas acima de tudo respeitava-o, pois era um homem trabalhador, e um médico dedicado aos doentes… pouco frequente naquelas bandas…. vinha ao hospital operar a qualquer hora se fosse preciso… e nunca o vi virar a cara a nenhuma luta que implicasse meter o doente na mesa operatória, e dar tudo para lhe salvar a vida… era quase desprovido de exteriorização de sentimentos, mas parecia-me um homem bom…

E nesse dia em que me fui embora, cruzei-me com ele… E dei-lhe um abraço… Um abraço forte… acho que foi a única manifestação de humanidade que tivemos em três meses…. Vieram-me as lágrimas aos olhos… E naquele silêncio ficou um “eu sei que tu sabes, que sabes que eu sei!” …. travámos duras batalhas um contra o outro, e duríssimas batalhas juntos pelos doentes…. e penso que ficou um enorme respeito e admiração recíproca…. de quem ao seu estilo dá o seu melhor!

O Afeganistão é um país maravilhoso, cheio de coisas maravilhosas e com um povo maravilhoso….

É importante que o mundo saiba!

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