9. Mulheres sem nome (3)

Agora já sabem, que nós médicos estávamos francamente condicionados por “regras” culturais, que nos custam a engolir, que se sobrepõem às nossas regras básicas de humanismo…. alimentadas pela ignorância, falta de acesso a qualquer espécie de formação básica (zona do mundo com a menor taxa de literacia no sexo feminino), e lavagem cerebral de certos líderes de opinião. Mas a ética, será sempre, quase que por definição (digo eu), muito polémica…. E aqui talvez conheça um dos seus extremos….. O problema é que não há um Islão, não há uma lei Sharia, não há uma hierarquia definida e organizada, a quem se possa apontar o dedo a quem comete atrocidades em nome de uma religião que tem tanta coisa de bom, como todas as outras…. A interpretação que o homem lhe quer dar para seu belo proveito é que tem uma complexidade extrema, e em cada canto do mundo, tem um contexto diferente que leva a que uma sociedade se organize desta ou daquela maneira…. O que há, sem dúvida, é falta de informação, falta de escolha, falta de civismo….. A pobreza na pior das suas formas…. num povo bélico, em quem é impossível pôr as rédeas… e como já disse com 95% da população que é capaz do melhor que já vi, e 5% do pior que este planeta já pôs os olhos em cima….. mas como sempre é difícil transparecer vivências, sem que as vivam, experiências sem que as sintam …… mas humildemente faço um esforço, para que vos possa transportar até este recanto perdido do mundo, para que percebam a importância da compreensão, da tolerância….. e dos perigos da indiferença!

Tenho muito cuidado, para não ser demasiado político, mas torna-se difícil….. Os USA, acabam de matar o Líder dos Taliban paquistaneses, com um drone, bem perto de onde eu estava…. para quê?????? Alimentam o ódio dos dois lados, matam inocentes mulheres e crianças inclusive, aprofundam o fosso entre o Ocidente e o Islão, reforçam a militância dos Taliban, e a motivação da Al-Qaeda….. enquanto o já encontrado substituto, ao que se diz, é muito mais duro, cruel, e impiedoso….. Vamos pagar durante gerações estes erros históricos em que todos temos culpa deste lado da barricada, nem que seja só pela nossa inacção……

Mas da forma como eu vejo as coisas, os Médicos Sem Fronteiras, de quem eu me orgulho de ser apenas um soldado raso, luta para que a diplomacia, a aproximação, a colaboração e o contacto entre os extremos aconteça de uma forma suave, e lenta certamente, mas que promove a paz, quando há tanta gente a querer fazer guerra, e em todos os cantos do planeta presta cuidados de saúde, de graça, nas zonas onde estes são mais precisos….. graças à boa vontade das contribuições dos particulares que acham que vale a pena tentar evitar que este nosso planeta azul se torne, simplesmente, num teatro de guerra…..

E a mim calhou-me encontrar este lugar, esta realidade, tão forte, tão intensa….. que me esticou as emoções aos extremos e com a minha simples vivência, de quem é apenas um médico, …… mas que gosta de acreditar, utopicamente, que, pelo menos, a minha família, os meus amigos, a minha cidade…… e, gostava eu de dizer, o meu país…… terão uma atitude mais sensata, mais compreensiva, mais tolerante e menos indiferente, para com as grandes questões da nossa “casinha” azul e redonda onde, até prova em contrário, teremos de viver juntos para sempre.

Ufffff…..que grande introdução….mas não consigo evitar.

De volta ao Inverno de 2011, para mim rigorosíssimo, e àquela prisão em que nós vivíamos, em que nos restava a motivação para trabalhar, e representar da melhor maneira as nossas inspirações…. fossem quais fossem….

Deixem-me apresentar-vos a Patrícia, médica, ginecologista/obstetra, espanhola, madrilena, com raízes alemãs, com 30 e poucos anos, baixa, loira, olhos bonitos, e cheiiiaaaaa de garra e energia. É um furacão aquela mulher….. Dedicação ao trabalho como nunca vi, muito carinhosa com as doentes, muito rápida a pensar e executar, com fantásticas mãos cirúrgicas ….. Surpreendente! Rapidamente nos tornamos amigos, pois trabalhamos muitas vezes até à exaustão juntos, inspiramo-nos mutuamente, e partilhamos muitas das histórias que vos vou contar…… Eu nunca trabalhei tanto na vida, estive perto de colapsar em dois ou três momentos, literalmente dormia quando podia, e trabalhava quando a vida de alguém dependesse disso….. o que era grande parte do tempo….. e eu e a Patrícia perdemos a conta à quantidade de vezes em que éramos chamados de madrugada, para a imensidão de patologias obstétricas que florescem nesta parte do mundo….

E esta era apenas mais uma noite…… mas nunca mais me esquecerei do que senti…. Eram 2 ou 3 da manhã, e toca o meu telefone….. Acordo, pedrado de sono e era a Patrícia: “Estás pronto?“ diz ela a rir-se!! “Sempre. Vamos lá embora!” contagiado pelo seu bom humor…. Ao sair da cama levo com um choque térmico que me acorda logo, ….. estão para aí menos 10 graus, numa casa sem aquecimento….. Água na cara, visto o meu Shalwar Kameeze (túnica e calças largas)…… respiro fundo e vamos embora…. Encontro-me com a Patrícia, e vamos juntos para o carro dos MSF….. A Patrícia neste momento já tem a cara tapada com o véu, onde apenas os olhos podiam ficar à vista….. Se para mim não era fácil lá estar, para uma mulher estrangeira, era muito mais complicado com estas condicionantes e muitas outras…. trabalhar todo o dia de cara tapada…..é asfixiante! E vamo-nos a rir de coisas estúpidas na pequena viagem de uma prisão para a outra…. casa-hospital…. A Patrícia, entretanto, diz-me que temos uma cesariana, urgente, não emergente…. o bebé está vivo mas atravessado no útero…. Mais uma cesariana, são tantas!! Cerca de 60%-70% das cirurgias em cenários de guerra são cesarianas….. a vida continua! E chegamos ao hospital, mudamos de comportamento….. não há piadas porque as mulheres não podem rir, falamos bem afastados e nunca lado a lado….. e vamos à nossa vida. A Patrícia entra na Maternidade para, com as enfermeiras parteiras, confirmar o que se passa, enquanto eu vou pôr as tropas a funcionar no bloco operatório….. Todos os enfermeiros do bloco e auxiliares estão ensonados e cansados, mas sou sempre recebido com sorrisos e propostas de “Xai!!!” …..

Entretanto chega a Patrícia, com a doente deitada numa maca, com as dores intensas das contracções do trabalho de parto…… que por entre gritos e suspiros regularmente solta um “Alllaaaaahhhhh!” que eu já nem estranhava… A Patrícia confirma-me o diagnóstico e, para nós, é apenas mais uma de tantas…. é o nosso trabalho. A doente entra numa antecâmara do bloco operatório a tremer de frio e cheia de dores….. e está tudo pronto para avançarmos: o bebé está vivo, e a mãe também, medicamente falando está tudo bem…. Falta um pequeno pormenor…… o consentimento do marido….que, entretanto, tinha sido chamado….

A rapariga tinha 23 anos, e claro já com 3 filhos, já sem burqa apenas de véu, uma vez que nos preparávamos para a operação,….. olhos escuros, traços finos com personalidade, e olhar assustado….. mãos e pés pintados de hena, com desenhos labirínticos….. Não a acho bonita, mas gosto de olhar para ela, talvez pela curiosidade de assimilar os traços femininos, que estariam por debaixo de todas aquelas burqas….. e dou-lhe duas pancadinhas na mão tentando passar a mensagem que vai correr tudo bem…..

E alguns minutos depois chega o marido….. Nos seus 50 anos, estatura baixa, mas ar altivo, cara alongada, barba grisalha comprida, chapéu Taliban, e coberto com a manta traçada pelos ombros…. Os Pashtun dão-se ao respeito, transparecem aquele ar de “antes quebrar do que torcer”….. eu admiro-os.

Chamo o Gohar Ali, enfermeiro-chefe do bloco, para servir de tradutor, e assumo o papel da Patrícia, de falar com o marido, pois eles raramente ouvem uma mulher, principalmente estrangeira e infiel…. Resumidamente, em inglês, digo ao Gohar Ali o que ele tem de dizer em Pashtun: “A sua mulher vai ter de ser operada porque o bebé está atravessado” e …….ouço um “Não” ….. “Sir, he says NO”, diz-me o Gohar Ali….. Levei um grande soco no estômago…. mas não caí….. sabia que esta luta era “minha”…….. Repeti-me, e dissequei os motivos “O bebé vai morrer, o seu filho vai morrer, e a sua mulher vai morrer, se não operarmos, TEMOS que a operar, será que compreendeu??”…….. “ Sir, he understands and he says NO!” Eu olho-o nos olhos, e ele não tem expressão….. não vacila…. não hesita, não abana….. Dirijo o meu olhar para a Patrícia, que a metros de distância ouve a conversa….. em silêncio, tem os olhos lavados em lágrimas, a única parte da sua cara que o véu me permite ver….. vejo o fim do mundo nos seus olhos húmidos, de quem sabe que com as suas mãozinhas, em 15 minutos facilmente resolvia esta questão, como já resolveu tantas outras…… Sofro em silêncio, e como sempre mantenho-me calmo nas situações em que o meu corpo liberta mais adrenalina…. e depois de dois socos frontais, brutais, que me esmagam e quase não me deixam respirar, vou buscar as minhas últimas forças para tentar ganhar esta luta que jamais podia dar como perdida…. “Gohar, pede-lhe por favor, pede-lhe para nos deixar salvar a vida a esta mulher e ao seu filho….. pede-lhe por favor…..que nos deixe fazer com que as três crianças que ele tem em casa não fiquem sem mãe…….pede-lhe por favor!! “Sir, he says NO, he doesn’t want his wife to be touched inside, he says he can buy another one ……”

E perdi por KO, uma luta que nunca pensei que existisse, e que jamais pensei poder perder….. “Gohar, ele percebeu, estás a traduzir bem????“ Só podia ser um problema de comunicação….. não podia ser verdade. “Sir, he understands, he says NO!” …… e ela ali à minha frente com um bebé na barriga….. dois corações batentes com o tempo contado…. e uma morte que será num sofrimento atroz, …… e eu não podia fazer nada……

23 anos….. e ouviu toda a conversa, e nunca disse nada….. tremia e sofria com as contracções… e na maca em que entrou, saiu….. para morrer não sei onde e não sei como…… Foi certamente uma morte em dores, durante horas……. já vi muita coisa, e não consigo imaginar….

Voltamos para casa, em silêncio, sem dizer uma palavra……. na ânsia de quem quer esquecer…… não dissemos uma palavra……. não havia nada a dizer. Dois jovens médicos, cheios de força, afogados em frustração….

Não se pode ganhar todas…..

Deitei-me na cama……. e chorei desalmadamente até adormecer!

Não me podia ir abaixo…… pois não havia ali mais ninguém que soubesse fazer o que faço, e muitas vidas dependiam de mim….

Chorei………., não esqueci………., mas andei para a frente!!

Mas esta é apenas uma história, textualmente contada como aconteceu, que representa algo que não é a regra, mas que acontece muitas e muitas vezes naquele e em muitos lugares deste mundo…..

Mulheres sem nome!

1 Response
  1. Andreia Carvalho

    Vamos assumir que esse homem que matou a esposa e o filho faz parte dos “5% do pior que este planeta já pôs os olhos em cima” e que 95% dos homens Pashtun tomariam a atitude certa, renunciando a qualquer direito sobre a vida da esposa. Será assim?… Tenho as minhas dúvidas.

    Obrigada pelo trabalho incrível que faz!
    Beijinho

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