8. Dormindo com o Inimigo

Quem está no epicentro do conflito, fica a saber mais e a perceber menos… Aquilo que muitos tentam, do alto de grande sabedoria, explicar ao povo ignorante é sempre insuficiente, falso, incompleto, desactualizado ou apenas de visão curta… Mas, claro, tem de haver análises e leituras macro, ainda que falíveis são necessárias… Bons e maus há dos dois lados, e como tal tomar a parte pelo todo é sempre um erro colossal! Mas há pessoas que transpiram maldade, crueldade e ganância… e assim, numa memória fugaz, são quase sempre esses que andam a brincar aos rótulos de “terrorista” ou “terrorismo”… Eu não quero aprofundar demasiado visões políticas, pois esse nunca foi o meu objectivo… Mas, se considerarmos que todas as vidas são iguais, este rótulo de terrorista que cabe, por exemplo, a Osama Bin Laden, pelas mortes que causou, não caberá também a G. W. Bush que matou muitos mais? Eu saliento esta troca de “rótulos” de terrorista, como algo de gravíssimo pois quem os atribui sente-se depois na legitimidade de tudo fazer na “Guerra contra o Terror”…. E afirmação mais hipócrita do que esta não haverá nos últimos tempos… Não precisamos de olhar muito para trás na história para o tempo das bruxas na fogueira, ou da nossa querida Santa Inquisição que, com um rótulo, se ganhava poderes para toda e qualquer forma de tortura e morte!

Tudo isto para dizer que esta guerra de rótulos é perigosíssima! O que é Oposição, ou Rebeldes, Libertadores, Conquistadores, ou Terroristas é um terreno muito pantanoso, e que merecia mais da nossa atenção… Ainda assim, se eu não tenho qualquer elogio a fazer a Vladimir Putin, Bashar al-Assad, George W. Bush, Donald Trump…. também não tenho nada de positivo a dizer sobre Estado Islâmico, Al-qaeda, ou Taliban…. E também lá dentro haverá gente boa, não tenho dúvidas, mas são dominados por gente má! Toda e qualquer forma de desrespeitar os Direitos Humanos tem que ser condenada com a mesma firmeza, independentemente de nos dar mais ou menos jeito.

A oposição a Bashar al-Assad e ao regime sírio é de uma complexidade imensa… A revolução, ou insurgência, (dependendo dos pontos de vista) foi feita pelo povo Sírio, na luta pela democracia, liberdade de expressão e fim da ditadura… Disto tenho poucas dúvidas, mas é claro uma opinião pessoal, não aceite por muitos…

Acontece que inimigo do meu inimigo é meu amigo (seja ele quem for) e assim a oposição síria revolucionária abriu os braços a uma série de grupos extremistas, de bases não-sírias e patrocinados pelos grandes dominadores do tabuleiro de poder Sunita: Arábia Saudita, e restantes Emirados… O que fez com que muito rapidamente a Al-qaeda tivesse uma posição preponderante nos territórios dominados pela oposição síria, e mais tarde o grande bicho-papão Estado Islâmico, com jihadistas vindos de todo o mundo… E se virem as subdivisões destes grupos que mudam quase ao dia, perdem-se em nomes Árabes para todo o sempre… Eu não estou com isto a tentar explicar os porquês da guerra da Síria, nem o que a alimenta em termos geoestratégicos do Médio Oriente, mas sim a tentar mostrar o que passou a ser o dia-a-dia da grande maioria da população síria que queria lutar pela democracia, mas foi recebida com a maior guerra dos nossos dias e ainda para mais, viu-se rodeada e consequentemente amordaçada, amedrontada e condicionada por grupos de gente muito má! Que, por acaso, professam a mesma subdivisão do Islão, mas que nada têm em comum… E, mais do que nunca, a expressão “estar entre a espada e a parede” fez/faz mais sentido naquilo que é o dia-a-dia de toda a população Síria que eu conheci… que por sinal são gente boa, de carácter, trabalhadores e, para mim, uma enorme fonte de inspiração!

Num certo dia, recebemos no nosso hospital um ferido de guerra, que era um combatente… Nós nunca fazemos perguntas sobre quem é quem, muito menos num cenário da complexidade da Síria… e como não percebemos árabe, há todo um mundo de informação dos sotaques, das expressões, etc, que nos escapa… Mas eu estou lá para salvar vidas e não para julgar ninguém… Torna-se óbvio que é um combatente da Al-qaeda, pela tensão com que os médicos e os enfermeiros sírios o abordam, pela quantidade de gente com armas que, no início, entra com ele no hospital de uma forma pouco simpática para com os demais… e, mais tarde, ficamos a saber que será mesmo alguém “importante” na Organização pela preocupação, até de mercenários do Norte da Europa, com o seu estado de saúde… É Al-qaeda!

Eu não consigo deixar de pensar o que é que ele ou pessoas como ele já fizeram quer na Síria, quer por esse mundo fora… Mas naquele momento eu (e imagino que também o cirurgião) sou uma máquina sem sentimentos, em que o corpo humano é algo que eu tenho que compreender e, nestes casos, “resolver” os problemas que tiver. Mas, claro, consciente ou inconscientemente estas situações deixam-nos desconfortáveis… Nunca me aconteceu, mas não são poucos os casos de médicos que tiveram armas apontadas como forma de pressão.

Este homem tinha uma lesão no olho causada por um estilhaço, e parecia ser impossível salvar o dito olho, e tinha levado também um tiro no abdómen… O seu estado clínico era relativamente estável, mas a indicação cirúrgica é óbvia e imediata… Com o ecógrafo vejo que tem líquido no abdómen, e seja sangue ou líquido intestinal, naquelas circunstâncias tem que ir para o bloco operatório… Explicamos isso ao doente, que estava nervosíssimo e algo agressivo… e muito mais preocupado com o olho do que com o tiro no abdómen… Eu até compreendo essa percepção, mas ao olho nada havia a fazer e não ia morrer disso, e o tiro no abdómen se não se fizer nada, pode facilmente ser fatal! Através dos seus companheiros combatentes, cuja conversa foi muito cordial e construtiva, conseguimos convencê-lo a aceitar ser operado…

No momento da indução anestésica aconteceu-me algo que é relativamente raro, mas expectável com este tipo de doentes… Nos escassos segundos entre anestesiá-lo (anestésico geral, analgésico e relaxante muscular) e colocar o tubo endotraqueal (para ventilação e protecção dos pulmões), o doente tem um vómito brutal e a consequente aspiração pulmonar desse conteúdo alimentar/gástrico. Esta situação é um dos pânicos dos anestesistas, pois pode originar uma complicação grave… Felizmente tenho comigo enfermeiros fantásticos e ultra competentes, que reagem ao segundo em meu auxílio, para aspirar o vómito, bascular a posição da mesa operatória para que o vómito não vá para os pulmões e, o quanto antes, colocar o tudo endotraqueal na traqueia… Nunca me cansarei de elogiar a astúcia, competência, dedicação de todo o staff sírio que trabalhou comigo, e muitos quase sem formação superior… Mas iam trabalhar com amor à pátria e ao seu povo, e não por um salário! Falarei disso noutra altura…

O pânico e o pico de adrenalina são segundos e a cirurgia segue em frente…. e só no fim da cirurgia ou até mesmo nos próximos dias saberei as consequências desta aspiração pulmonar de vómito que, mesmo nos Cuidados Intensivos mais tecnológicos da medicina dos ricos, pode ser fatal… É apenas um mau momento no qual a “culpa é da doença”, no entanto abala a minha tranquilidade… E eu fico literalmente agarrado ao doente, pois não temos ventilador automático e a ventilação/respiração tem que ser feita manualmente por mim, e assim se cria ali uma relação tipo cordão umbilical… a vida dele está ligada às minhas mãos enquanto ele está a dormir… melhor dizendo anestesiado… mas na cabeça da maioria das pessoas não ligadas à medicina o Anestesista adormece os doentes e assim estava este… a dormir um sono muito profundo! E enquanto o cirurgião opera, a minha mente divaga entre uma série de automatismos, mas que decorrem até prova em contrário quase em piloto-automático… De cada vez que, com as minhas mãos, lhe insuflo os pulmões com ar, penso que estou a dar vida a uma pessoa má… ou presumivelmente má, já que não sei nada sobre ele. Os meus pensamentos fogem: “Será que ele matou?”, “Será que ele torturou?”, “Será que ele me mataria?”, “Será que ele poria uma bomba na minha querida cidade do Porto?”…. “De que é que ele seria capaz?!?!”… Nem por um segundo estas divagações interferem com as minhas atitudes como médico, no entanto, elas estão lá!

A cirurgia é longa e trabalhosa, apesar de ele ter tido muita sorte. Eu acho sempre que eles tiveram sorte, porque os que não a tiveram nem nos chegam às mãos… A bala entrou na cavidade abdominal e perfurou o fígado, mas sem atingir nenhum dos grandes vasos, nem o intestino ou algum outro órgão… A revisão da cavidade abdominal tem que ser muito cuidadosa e minuciosa, pois nunca se sabe bem qual o percurso da bala… é tudo menos linear como seria de prever… A hemorragia era importante, mas não dramática e a sua origem era do fígado e foi estancada pelo trabalho do cirurgião…

O final da cirurgia, e da anestesia, pode também ser um momento crítico… e principalmente neste caso em que houve uma grave aspiração pulmonar… A transição de ventilação artificial para ventilação espontânea, nestes casos, pode não ser simples… mas foi. Tudo suave e sob controlo… e a cirurgia, para o que poderia ser (em potencial), correu muito bem…

O doente vai para o internamento com oxigénio suplementar mas em baixa concentração e a evolução do primeiro dia até parecia estar a correr bem… Mas no segundo dia a história foi bem diferente: a inflamação/infecção pulmonar a agravar, apesar do antibiótico, e o abdómen progressivamente a ficar cada vez mais distendido… O que nós chamamos um ileus paralítico, quando a inflamação do intestino (causada pela cirurgia neste caso) faz com que este perca a capacidade de se contrair (peristaltismo) e emitir gases… causando uma enorme distensão abdominal que prejudica também em grande escala a respiração, pela elevação do diafragma… Então, o doente está com uma ventilação/respiração péssima, apesar de todo o oxigénio que lhe podemos dar está a oxigenar mal… está cheio de dores pela distensão abdominal, sudorético…. E com isto tudo francamente agitado e algo agressivo… Mas isto da agitação e agressividade não é por ter mau feitio, faz parte da manifestação das suas doenças graves do momento…

Passei essa segunda noite a ser chamado ao hospital, para meu desespero e exaustão… Eu não tinha ninguém que me substituísse… Era eu ou eu, caso fosse preciso, todos os dias!! E claro, tenho muitos outros doentes… Ele arrancou a sonda nasogástrica várias vezes, que era essencial numa situação como esta, e os enfermeiros tinham muita dificuldade em recolocá-la, porque ele era um homem forte e muito agitado… e chamavam-me para ajudar… e também para as dores/desconforto abdominal que ele tinha… A morfina é essencial no controlo da dor, mas também perpetua em larga escala este não funcionamento intestinal… E de todos os medicamentos laxantes e para aumentar a cinética do intestino que tínhamos à nossa disposição… um deles (a neostigmina) sendo extremamente eficaz, tem efeitos adversos cardiocirculatórios potencialmente graves… o que fazia com que só na minha presença e com a devida monitorização é que eu o administrava… Foi um desespero, todo o consumo de atenção e energia que este doente nos fez passar a todos, e a mim em particular tirou-me três noites de sono… quase enlouquecia! Mas eu tenho que fazer o meu trabalho… e as bombas continuam a cair, e as cesarianas seguem no bloco operatório, etc, etc…

Tenho a vida de um combatente da Al-qaeda na minha mão, e as perguntas frequentes sobre o seu estado de saúde dos seus companheiros combatentes: “Ele vai sobreviver?”… “porque é que ele não respira bem?” …”porque tem a barriga tão distendida?” … sempre de uma forma cordial, mas assertiva… e, sugestionado ou não por saber quem são, deixam-me um certo desconforto… mais ainda porque realmente a situação não estava fácil de resolver…

Foram uns dias de muito desgaste para o doente e para mim, até que o seu quadro clínico começou a dar a volta, e tudo evoluiu a caminho da recuperação total, para mais um sucesso da equipa dos Médicos Sem Fronteiras… Ainda surgiram da parte dele e dos companheiros perguntas difíceis sobre o tal olho… mas nada tínhamos a fazer…

Salvámos-lhe a vida, eu, o cirurgião e todos os enfermeiros… Salvámos a vida a alguém que poderia, noutras circunstâncias, querer tirar a nossa, só porque sim… Que dilemas éticos levanta este acontecimento dentro de mim? O que significa salvar a vida a alguém capaz de tirar tantas outras, e talvez a minha ou dos meus queridos? O que significa ajudar um inimigo da humanidade?

A minha cabeça está claramente dividida entre o Médico e a Pessoa: Como médico, é muito simples… eu não faço julgamentos, eu sou uma máquina desprovida de sentimentos que executa aquilo que sabe, que responde apenas à ciência que fui absorvendo ao longo dos tempos… estou formatado para salvar vidas!

Como pessoa, a questão é bem diferente… Se eu estou a ajudar alguém que perpetua o mal, estou a ser conivente ou cúmplice dessa maldade… Se esta pessoa representa exactamente o contrário de todos os ideais que eu defendo, estou a ser altamente incoerente… Se eu acredito que no mundo não deveria haver pessoas como esta, porque estou eu a salvar-lhe a vida? Poderia talvez, ser um objector de consciência e não trabalhar para determinadas pessoas… mais ainda quando me deram tanto trabalho e noites sem dormir!? Não! A resposta para mim é Não, Não e Não! E talvez no meu íntimo exista uma parte de mim que acredita piamente que do ponto de vista significativo a médio/longo prazo estas serão as vidas que mais vale a pena salvar, na luta pelo mundo melhor…

Porque este homem, dentro do seu fundamentalismo religioso e comportamental que encontra as suas raízes essencialmente na ignorância, um dia vai pensar sobre a sua vida… e porque é que está vivo! E vai pensar que um não-muçulmano, não-árabe, não-sírio ou iraquiano (nem sei qual a sua nacionalidade), e não-amigo…. lhe salvou a vida! E eu acredito mesmo, que esta é a solução para os grandes males do mundo… Aproximar estas gigantes clivagens entre povos, culturas e religiões! Acredito mesmo que só respondendo ao ódio com amor é que conseguiremos diluir e diminuir os fundamentalismos de parte a parte… E que ninguém acredite que o fundamentalismo é só Islâmico… Há fundamentalismo de Cristãos, de Hindus, de Budistas, de Brancos, de Pretos e de muito mais… sustentado, em ódio, em medos, e em ignorância que nasce de uma não convivência emotiva entre diferentes grupos de pessoas…

Para mim, salvar esta vida e muitas outras de combatentes e grupos fundamentalistas, de vários países que já me passaram pelas mãos leva-me a crer que enviar cuidados de saúde é muito mais eficaz do que enviar mais bombas que só exponenciam os ódios…

“Se acreditarmos no olho-por-olho, o mundo vai ficar cego” Martin Luther King Jr.

Eu nunca deixo de ter uma mão firme na crítica, na condenação de todos os que perpetuam a maldade e desrespeitam os Direitos Humanos, mas depois de várias vezes…. Dormir com o Inimigo… todas as minhas reflexões me levam a acreditar que se dermos Amor e fizermos o Bem, de uma forma ou de outra será isso que vamos receber, e a probabilidade de salvarmos o mundo é muito maior…

Que nunca deixemos que o ódio e o fundamentalismo sejam a resposta a quem não gosta de nós, porque ai seremos tão culpados quanto eles na destruição do nosso sentido de Humanidade…

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