Por vezes, antes de começar a escrever uma história, peço inspiração divina para ter a capacidade de melhor retratar os seus principais actores e sentimentos. E a melhor forma de perceber o quanto é que eu gostava de ter essa inspiração, vem do facto de eu ser a pessoa mais ateia que conheço… Gostava muito de ter mais ART para ser fiel à realidade que vivenciei, mas acima de tudo de ter mais HEART, para ser um espelho honesto dos sentimentos tão intensos dos que não têm voz, quando são os que mais deveriam ter…
Ouvimos todos os dias pessoas a falar que não têm grande motivo para ter voz, enquanto que há milhões de silenciosos que deveriam ser ouvidos… E por esses falo, e por esses escrevo, por esses peço inspiração!
Nunca haverá um retrato fiel da guerra da Síria, são infinitas histórias, vistas de diferentes ângulos, com um exponencial de interpretações maior que o universo… ainda para mais quando quase sempre a razão dá lugar às emoções, a verdade passa a ser um conceito abstracto, intocável, inatingível… Eu vi e vivi um pedaço tão pequenino, quer de tempo quer de espaço, e no entanto as emoções são tão fortes que não tenho dúvidas de que, naquele momento, ali está o centro do mundo… o que sem dúvida me ajuda a reforçar as minhas motivações e a convicção que de todos os lugares do mundo É Ali Que Eu Quero Estar!… no meio da guerra! E porquê? Talvez esta história me ajude a fazer transparecer esse sentimento…
Há bombas a cair todos os dias, e como tal mortos e feridos com todas as histórias possíveis… Eu, além de ser o Anestesista, durante um bom período de tempo era também o médico responsável pelo Serviço de Urgência… E num belo dia chega uma criança à urgência vítima de mais um bombardeamento… Se eu percebi bem a história, a bomba caiu na casa ao lado e este menino de 3 anos caiu com o estremecer da sua casa e bateu com a cabeça no chão… O que nós chamamos na medicina um TCE (Traumatismo Crânio-Encefálico), que pode ir de uma simples “turra”, até a uma elevadíssima causa de mortalidade… O Ahmed chegou-me às mãos já 24 horas depois do sucedido. A família no dia anterior já o tinha levado a um hospital, onde lhe tinham feito exames, e dado alta… Os pais preocuparam-se pois o Ahmed estava a piorar… mais adormecido, com o discurso mais lentificado, com muita dificuldade em se alimentar… e bastante pior do que estava no momento do acidente…. Apesar de não ter nem um arranhão no corpo. Isto para um leigo é difícil de compreender, mas do ponto de vista científico é quase sempre verdade… o processo inflamatório ganha uma vida própria após qualquer que seja a agressão ao nosso corpo, o que faz com que inevitavelmente pioremos, antes de melhorar (se for caso disso)….
Por incrível que pareça, o Ahmed no dito hospital no dia anterior fez uma TAC Cerebral, coisa que no nosso hospital não tínhamos… Eu pego no CD da TAC que os pais traziam (sem relatório) e analiso com todo o cuidado. Diga-se que tenho uma experiência razoável com TCE graves e com a interpretação de TAC cerebrais, mas apenas em adultos! E tenho consciência que transportar esta experiência/conhecimento do adulto para a criança pode ser perigosíssimo na medicina. A TAC é de ontem, o que faz com que hoje possa estar muito diferente o cérebro deste pequenino, ainda assim dá-me bastante informação. Não tem nenhuma hemorragia cerebral, e tem apenas um edema difuso, ou seja, uma inflamação, ou seja, “está inchado”… No entanto, mesmo sem hemorragia, “apenas” o edema pode matar uma criança ou adulto pelo aumento da pressão intracraniana e consequente não irrigação sanguínea de estruturas nobres do nosso cérebro…
Eu estou a avaliar o Ahmed e a processar toda esta informação, sei que o edema cerebral está ainda numa fase de crescendo e estou francamente preocupado… Neste tipo de situações, em que as nossas competências e capacidades estavam ultrapassadas, tínhamos a hipótese de transferir os doentes para a Turquia… Isto na teoria, porque na prática nem sempre era fácil, por uma série de questões… Na minha honestidade intelectual, eu sei que tenho de transferir este miúdo… ainda que talvez o conseguisse tratar. Mas como posso eu lidar com este “talvez”? Converso com o pai, dentro daquilo que é uma conversa super difícil, mais ainda quando há um tradutor pelo meio, cuja qualidade da tradução eu desconheço! Já seria difícil quando se fala a mesma língua, quanto mais traduzido para árabe?! O pai do Ahmed diz-me que não tem documentos… quando foi chamado para o exército para matar o seu próprio povo a mando do Bashar al-Assad, fugiu/desertou e ficou sem passaporte… e isto faz com que, pelo menos no imediato, ele não possa passar a fronteira e o Ahmed teria de ir sozinho… A mãe está a amamentar outra criança e a cuidar dos outros filhos… A Turquia, nestas situações que eram absolutamente excepcionais, aceita doentes em casos de vida ou de morte, mas não aceita famílias inteiras para este efeito…
O pai do Ahmed faz-me aquelas perguntas que dilaceram o meu coração… eu preferia caminhar sobre brasas a arder a ter que responder a estas perguntas: “O Doutor não consegue salvá-lo?”, “O que lhe acontece se ele ficar aqui?” “Quem é que vai cuidar de um miúdo de 3 anos na Turquia sozinho, onde já estão quase dois milhões de refugiados sírios?” Nestes momentos apetece-me chorar e fugir, mas engulo todos esses sentimentos instintivos e faço-me homenzinho! Respondo a todas as perguntas com toda a transparência possível, ainda que eu próprio não saiba qual a melhor decisão. Arriscar tratar o miúdo ou mandá-lo sozinho para a Turquia?!
Eu tenho de tomar esta decisão, não para salvar a minha consciência, mas sim para salvar a vida desta criança! É uma tempestade de dores e angústias, entre a ciência e a ética, tentando pesar a evolução sempre imprevisível do edema cerebral e o que será da vida de uma criança refugiada sozinha, talvez para sempre separada da sua família… Parecia-me também cobarde se passasse essa decisão para as mãos daquele pai, que não tem os conhecimentos que eu tenho e que ficaria assombrado para a vida toda pela sua decisão…
Eu decido tratar a criança! E assumo a responsabilidade.
O pai agradece-me, o que me rebenta o coração, pois sei lá porque é que ele me está a agradecer… Explico-lhe que o Ahmed ainda vai piorar, vai ficar mais adormecido, e tudo o que eu posso fazer por ele é hidratá-lo e alimentá-lo quando ele deixar de o poder fazer, até que o seu cérebro comece a “desinchar”…. E que isto são dias, e eu não sei quantos são!! E também não sei se ele vai recuperar ou não, e se sim, com que sequelas neurológicas…
O Ahmed vai para o internamento, enrolado em cobertores, porque este hospital improvisado é gelado, e assim fica rodeado de um entra-e-sai de familiares e de rezas a Allah, sendo que a figura que está lá sempre ao seu lado é o pai…. Pois a mãe, por imposição, está mais dedicada às outras crianças…
A minha vida continua, pois trabalho não me falta, e entre o bloco operatório e o serviço de urgência perco a conta aos doentes que me vão passando pelas mãos…. Cesarianas, e mais cesarianas, feridos de guerra, pneumonias, etc, etc….
Volta e meia, vou passando a ver o Ahmed, que entretanto é claro que já não se alimenta e por isso tem catéteres, soros e sonda nasogástrica. As poucas palavras que dizia já não diz, e já a muito custo abre os olhos quando estimulado… O meu dia continua, e de cada vez que passo na porta daquele internamento ouço o pai a estimular o filho: “Ahmed, Ahmed!” De uma forma incansável… Nessa noite tenho que voltar ao hospital, e muito mais audível no silêncio da noite ouço a ecoar por todo o hospital: “Ahmed, Ahmed”… o que me vai assombrando e repisando a minha decisão…
No dia seguinte é claro, a sonolência de Ahmed evolui para um estado de coma. Ele não reage, não abre os olhos e só a estímulos dolorosos mexe os membros de uma forma errática… Na minha cabeça de médico, ouço a minha voz a dizer-me: “tu sabias que era esta a evolução natural deste traumatismo craniano!”… Na minha cabeça de Ser Humano só ouço: “o que é que tu fizeste?” E as dúvidas em mim multiplicam-se, e só vão sendo resfriadas pela enormíssima quantidade de trabalho que vou tendo…
Quando me aproximo do pai e do Ahmed, o pai olha-me com um olhar de quem tem ainda mais perguntas do que eu, mas não me culpa, não me julga enquanto me mostra a flacidez dos membros de Ahmed e a não resposta às suas chamadas incontáveis…
Eu não tenho TAC, não tenho análises, não tenho nada para acrescentar ao meu raciocínio clínico que cada vez mais se mistura com as emoções e punições de quem já não sabe, se sabe ou não o que está a fazer… Teria sido tão mais fácil mandá-lo para a Turquia…
Passam-se muitas horas, passa-se mais uma noite, e eu revejo na minha ciência possível se a alimentação e hidratação são as adequadas, se a posição da cabeça e do tronco são as indicadas para diminuir a pressão intracraniana… mas o tempo não passa! E se eu estou destroçado pela sensação que tomei uma má decisão, como estará aquele pai? Ele não sai de ao pé dele nem um minuto, e insiste à espera de um milagre: “Ahmed, Ahmed”… Mais uma noite que ecoa na minha cabeça este pai a chamar pelo filho… E mais uma noite que Ahmed passa totalmente inconsciente…
Há uma fase de ciência, e depois há uma fase de F#%&%# eu já não sei! É um desespero, é uma angústia, também eu estou a morrer aos pouquinhos… Eu não tenho culpa da guerra, nem dos bombardeamentos mas tomei uma decisão reflectida que tirou a vida a uma criança! E é nestas alturas que eu quero vir embora, não é pelo medo das bombas ou do Estado Islâmico, é por ter falhado…. E nesta profissão os erros pagam-se muito caro, e viver com eles é insuportável!
No dia seguinte, eu já não sei se é real ou do meu imaginário, eu só ouço: “Ahmed, Ahmed!”…. e aproximo-me do quarto do menino, pois nunca fujo às minhas responsabilidades… Examino-o como sempre, e ele volta a esboçar alguns movimentos dos membros… e o meu coração dispara: “há esperança!” O pai lê todos os meus movimentos e expressões faciais e eu não consigo deixar fugir um sorriso, ainda que o meu discurso não lhe dê esperanças, ele sente que eu senti que algo mudou…
E o pai intensifica: “Ahmed, Ahmed”… há três dias que ele está inconsciente… E eu sigo o meu trabalho, com uma dose de realismo que me domina sobre o prognóstico da criança. A meio da tarde, os enfermeiros, a pedido do pai, vieram chamar-me. Foi a primeira vez que me chamou… Os olhos do pai brilham a olhar para os meus….. “Ahmed, Ahmed!” E o menino abre os olhos, e dirige o olhar para o pai, o que representa um sinal extremamente positivo de que muitas das funções nobres do seu cérebro estão preservadas… Ainda não é altura de mandar foguetes, mas eu não consigo evitar chorar de uma forma descontrolada ao sentir um vendaval de emoções a entrar e sair do meu corpo…
No dia seguinte o Ahmed voltou a falar e depois a comer, e quando eu o vejo a caminhar pelos corredores do hospital de mão dada ao pai como se fosse uma criança qualquer eu explodi de felicidade!!! O que é que é ganhar o Euromilhões comparado com salvar a vida a uma criança e mantê-la ao lado da sua família?
E por isso, mais do que nunca: É aqui que eu quero estar!
Esta história feliz não apaga os mais de 500.000 que já morreram na guerra da Síria, apenas realça a importância da vida de cada um deles!