6. Estado Islâmico

Como eu o vi. Como eu o senti. Como o povo Sírio me o fez ver. Não pretendendo substituir os grandes conhecedores e especialistas destas temáticas, há algo que me leva a ter legitimidade de dizer algo construtivo… EU ESTIVE LÁ! E essa vivência pessoal é insubstituível, incomparável… e pretendo que seja sempre construtiva no meu crescimento pessoal, e também sinto que tenho a responsabilidade de a partilhar.

Há aqui duas ou três questões que têm de ser passadas ao de leve para que se compreenda como nascem estes movimentos radicais e fundamentalistas. Em 2003 os USA e seus Aliados, inclusive Portugal (onde foi iniciada a guerra, Base das Lages), decidem invadir o Iraque sob falsos pressupostos de existência de armas químicas… Deposto e morto Sadam Hussein com toda a classe política e executiva do país na sua maioria Sunita. Todos estes sunitas que não foram mortos, foram presos, humilhados e torturados e consequentemente radicalizados contra a nova dominância Xiita e todo o poderio internacional que os subjugou. Ora, estes não demoraram muito a organizar-se naquilo que veio a chamar-se a Al-qaeda do Norte do Iraque, região esta de clara maioria Sunita, cujo objectivo principal é de um dia recuperar o poder do país entregue aos Xiitas. Compreender estas duas grandes subdivisões do Islão não está na autoproclamação de cada indivíduo, mas sim na forma, como quem gosta de brincar às marionetes, rotula, aumenta ódios para uma eventual solidez e estabilidade governamental, seja a nível regional, nacional ou internacional.

ISIS, ISIL, Daesh, Estado Islâmico…são tudo sinónimos para confundir os mais desatentos. Curiosamente, a mim foi-me apresentado como Dawla (sinónimo de Daesh em Árabe que significa Estado). Ainda nada se sabia, e nada se falava sobre este grupo extremista radical islâmico, que entretanto se demarca da Al-qaeda por ter uma agenda diferente e talvez ainda mais radical e maléfica, quando eu entrei no Norte da Síria, na região de Idlib. Poucos meses antes da minha/nossa chegada para reabrir este hospital improvisado, o projecto tinha sido evacuado pela crescente pressão dos ditos grupos islâmicos radicais. O facto de estes, a pouco e pouco, dominarem pela opressão, medo e terror cada vez mais a população local, fez com que regras comportamentais fossem impostas a todos os Sírios e, obviamente, aos trabalhadores humanitários da região. Proibição do álcool já há muito se fazia sentir, mas agora também uma restrição de comportamentos, vestes (mangas compridas, véus,  burqas, etc) e até mesmo proibição de fumar. Ora, eu nunca vi um povo que fumasse tanto como o povo Sírio, mas confesso que é preciso que se perceba a envolvência para que não se façam juízos de valor instantâneos… Estão bombas a cair todos os dias, em que medida é que os riscos para a saúde do cigarro, a longuíssimo prazo, refreiam aquele pequeno prazer da vida, de quem não sabe se passará mais uma noite neste mundo?…

As mesquitas foram tomadas por Mullahs e Imas radicais que impunham a palavra de deus de uma forma cada vez mais castradora e punitiva… E assim, um povo que sendo quase todo ele muçulmano, mas com condutas de vida bastante moderadas, se ia transformando e virando para dentro, com caras tapadas, amedrontadas e subjugadas pelo medo que a palavra de deus lhes impunha. E as consequências à desobediência desta nova “lei divina” eram terrestres: prisão, tortura e morte.

E foi assim que entrámos na Síria, eu e a restante equipa dos Médicos Sem Fronteiras que iria reabrir o hospital, entre uma crescente pressão sufocante de grupos extremistas e a agressividade bélica sempre em crescendo do regime sírio. Muitas vezes não sei quem é quem, nem tenho de saber… pois eu estou lá é para salvar vidas, e não para análises políticas ou para julgar quem quer que seja e, por isso, esta minha “apresentação” ao Estado Islâmico veio essencialmente de uma forma indirecta, através dos relatos do povo, dos doentes e dos trabalhadores sírios dos MSF. Para mim era tudo novo, pois no Ocidente só se começou a badalar o nome Estado Islâmico após o degolar em directo no Youtube do jornalista americano. E ainda bem que desconhecia a sua fama, pois assim não fui dominado pelo medo e pude fazer o meu trabalho com a tranquilidade possível de quem está no meio de uma guerra e com bombas a cair todos os dias. 

O que mais me chamou a atenção foi o terror na cara das pessoas quando se falava no “Dawla”. Dawla, Dawla, Dawla…. As pessoas tremiam de medo, ao ponto que eu pensava que se tratava de uma pessoa em concreto… Sentir o medo que o povo Sírio sentia é dilacerante, pois além do medo das bombas, viviam com medo de todo o seu dia-a-dia condicionado com tudo o que é proibições…

Determinado dia, um dos motoristas num inglês simples pergunta-me: “Doctor, where from?”… Eu respondo “Portugal”…. E ele continua: “Doctor, Portugal, whiskey good?” E eu respondo: “Portugal, whiskey good!”…. E ele continua: “Dawla, no whiskey” fazendo caras de reprovação e sinais de vómito como desprezo… Gesticula ainda que tem a barba feita, em sinal de reprovação total às imposições radicais deste grupo de fanáticos… Muitos gestos, poucas palavras, que me chegavam para ler um povo que admiro e me apaixona pela resiliência com que lutam pelos seus ideais…

Há uma psique colectivamente afectada por traumas psicológicos que vão para lá da perda de tantos entes queridos, e de uma pátria amada a sangrar diariamente…

Não sei, nem consigo imaginar o que é viver a todo o momento, o MEDO! Medo das bombas de Bashar al-Assad, medo do sufoco dos grupos extremistas, medo de fugir como refugiado para o desconhecido, medo de tudo e de nada… corrói todo e qualquer discernimento, e desfaz talvez para todo o sempre a estrutura do nosso ser, transformando as nossas gavetas de pensamentos em salas de terror sem fim…

Uma das áreas em que me tenho diferenciado é o Ecocardiograma (Ecografia ao Coração), e como tal várias vezes fazia uso do ecógrafo que tínhamos na minha prática clínica. Certo dia, uma das enfermeiras vem ter comigo a dizer que tem problemas no coração. Há aqui várias questões a compreender para que possam ter os olhos e o coração nesta história: esta enfermeira não fala inglês (e eu não falo árabe), e fazia parte das muitas (não todas) que se cobriam totalmente de preto, deixando apenas à vista uma pequena frincha nos olhos. Ao perceber que eu, quase como que por magia, conseguia ver o coração através do ecógrafo, pede para ser consultada por mim…. claro está através de uma tradutora, importante que fosse também mulher dado ser um assunto íntimo e sensível… Esta enfermeira tem 20 e poucos anos, e para mim é “uma das que anda de preto”, pois eu não as distingo! É triste, mas é verdade…. Já há muito que me sinto algo formatado para salvar vidas, e questões minor geram em mim pouca atenção… Mais uma vez, é triste, mas é verdade… Através então da tradutora, explica-me os seus sintomas, que são altamente inespecíficos e com uma associação clara a um stress traumático de um dia-a-dia de terror… É nestas fases que preciso de ter uma mente muito plástica para ter uma medicina adaptativa ou, se quisermos ser mais honestos, inventiva, que não é nada o meu género pois sou um homem da ciência e ultra pragmático.

Aceitei consultá-la e examiná-la e com uma boa dose da conversa “lost in translation”, percebi que para ela era muito importante que eu lhe visse o coração… pois no seu subconsciente era dali que vinha o problema… Há uma parte de mim que sabe bem que estou a fazer aquilo para nada, mas dadas as circunstâncias tenho que adaptar a minha “ciência”… Explico-lhe que tem que levantar a roupa e tirar o soutien: DRAMA! Vejo-a chorar e em lamentações com a tradutora que me parece bastante sensata… Até onde chegam os meus conhecimentos e as limitações do ecógrafo (que era básico) o coração da rapariga era perfeitamente normal, tal como era de esperar… Expliquei-lhe isso, em detalhe…. E como os médicos à moda antiga gostam de dizer: “esse coração vai durar para sempre!!”…

Que fiz uma boa acção e um acto de piedade pareceu-me claro, não sei se lhe dei anos de vida, pois a vida na Síria é uma roleta-russa, mas dei-lhe sem dúvida alguma paz de espírito… Mas o que este episódio gravou na minha memória, não na altura onde as minhas preocupações eram de ser médico e salvar vidas, mas mais tarde, foi a infinidade de corações dilacerados que estes conflitos deixam para trás, que nem a ciência consegue ver…   

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