Já não escrevo há mais de dois anos, e como tudo o que já não fazemos há algum tempo, sinto-me completamente enferrujado. Mas são vários os motivos que me levam a querer escrever outra vez. A minha intenção de escrever neste blogue foi barrada, na impossibilidade de tirar fotografias e nas infindáveis regras de segurança dos MSF, que me impedem de ser totalmente transparente na minha escrita, como gostaria. Mas agora tenho mais tempo, e a proximidade de uma próxima missão leva-me a reviver o que já vivi e o mundo de emoções que ficou por escrever sobre o Paquistão e o Afeganistão. Dois países, que amei e odiei, onde vivi intensamente e que me marcaram profundamente.
Gostava que estivessem lá, gostava que percebessem. Gostava que largassem muitos dos preconceitos que têm para com estes povos e gostava que percebessem a importância da existência de organizações como os MSF e a sua importância major na aproximação dos extremos, na sua luta pela promoção de cuidados de saúde básicos, e o seu rasto de sementes de paz, numa altura em que parece haver tanta gente interessada em cultivar os ódios e as guerras.
Reli o que escrevi sobre a minha chegada a Islamabad, e a minha viagem para Timergara, a minha nova casa. Já passou algum tempo e luto para ressuscitar da minha memória as fortíssimas sensações que vivi, boas e más, neste país.
A recente divulgação da história de Malala, nomeada ao prémio Nobel da paz, criança/adolescente que foi baleada na cabeça pelos Taliban, por lutar pela educação para as raparigas, oriunda do distrito do Swat, na província do Noroeste, bem perto de onde eu estava, veio também reavivar as minhas memórias e alimentar a minha vontade de pôr por escrito muito do que vivi e senti neste fantástico país, que Mohammed Ali Jinah fundou em 1947 após a independência do Império Britânico e a partição com a Índia, que terá sido um dos episódios mais sangrentos da História do século XX, e que deixou marcas para sempre no conflito contínuo, até hoje, pelos territórios de Kashmir, que alimentam o ódio fraterno dos arqui-inimigos Índia-Paquistão, que em tudo se relacionam com o extremismo islâmico, o Islão político, as suas intervenções militares, os Taliban e a Al-qaeda.
Tudo isto para dizer que a complexidade geoestratégica do Paquistão é brutal, desde há muitos anos, e mais recentemente uma das “linhas da frente” mais intensas da Guerra Fria, onde “nasceu” e cresceu e foi catapultado e alimentado para aquilo que hoje conhecemos como Islão radical, extremismo, etc… E muito mais há para dizer, mas eu sou apenas um Médico, cuja função é salvar vidas.
E é sobre isso que vos queria escrever…. Num sábado ao fim da tarde, chego, após uma fantástica mas cansativa viagem, à minha nova casa….e finalmente o momento tão esperado: o reencontro com o meu grande AMIGO, Yaroslav.
Cirurgião russo, que conheci no Congo, onde trabalhámos longas horas juntos, criámos laços fortíssimos, na altura ambos na 1a missão pelos MSF, dos dois extremos opostos da Europa, descobrimos tanto em comum…. Jovens, robustos, cheios de vontade de dar o corpo às balas por uma causa em que acreditamos, trabalhámos juntos até à exaustão, horas e horas de bloco operatório sem comer, onde a motivação parecia não ter fim. Muito aprendi com o seu estilo robótico eslavo, do “antes quebrar que torcer”….e gosto de acreditar que o meu lado latino, mais suave, mais sentimental equilibrou esta dupla fortíssima, que tinha contornos hercúleos, dada a compleição física do Yaroslav.
Rimos e chorámos juntos, histórias da guerra que partilhámos que ficaram para sempre, e à noite, com um copo de vinho de qualidade muito duvidosa, partilhávamos as saudades dos nossos mundos e as histórias em comum de corações partidos…. Salvámos vidas e perdemos também duras batalhas pelas vidas de outros, juntos, e isso cria laços muito fortes. E muitas vezes, exaustos, chegávamos a casa para ainda dar voltas à cabeça com aulas de francês à luz das velas, onde muito nos ríamos com o professor congolês. Nunca me esquecerei do dia em que o Yaros deixou o Congo, e tivemos de nos despedir. Quase não conseguia olhá-lo nos olhos, tal era a carga emocional desta despedida, e muito rapidamente dei-lhe um abraço e concordámos “See you soon! For sure!”, virei costas e literalmente fugi para o hospital banhado em lágrimas, a chorar como uma criança abandonada, compulsivamente sem conseguir parar, limpando a tristeza de não saber se alguma vez voltaria a ver aquele amigo que fiz para a vida.
E ali estávamos nós, outra vez…. do Congo para o Paquistão, juntos outra vez. Frente a frente, abraçámo-nos com toda a força, um ano e meio depois. Não consegui evitar algumas lágrimas que rapidamente escondi. Jantámos e falámos como se o tempo tivesse parado e depois o Yaros interrompeu a conversa para me dizer que queria ir ao hospital, só dar “um saltinho”, para ver como estavam os seus doentes… agora também meus.
E eu, de imediato, lhe disse que o acompanhava para começar a meter “mãos à obra”. Desaconselhado pelo coordenador do projecto, que me dizia para descansar, relaxar e apenas no dia seguinte começar a trabalhar com calma. “Naaaaa!”, 2-3 dias “perdidos” em Islamabad, sem ver doentes, eu queria era começar já a fazer o que vim fazer. E assim fomos, saímos da nossa “prisão”, e de carro fomos para o hospital. Andámos pelo hospital, enquanto o Yaros me apresentava aos locais e me mostrava as diferentes áreas do hospital, até que chegámos ao serviço de urgência…. Eu ainda estranho a tudo e a todos ia na sombra do Yaros que me guiava, e enquanto os médicos paquistaneses punham dúvidas dos casos potencialmente cirúrgicos ao Yaros, eu assistia às conversas. Alguns tinham tido a sua formação médica na Rússia, e falavam russo com o Yaros e eu ficava a contemplar a envolvência, as roupas, as caras, as burqas, todo um mundo novo que agora era o meu mundo por uns tempos.
De repente, aproximo-me de uma criança com dificuldades respiratórias evidentes e em grande dificuldade lutava para respirar. Era um rapaz com 2 ou 3 anos, e via-se nos olhos do pai o pânico de quem via o seu pequeno filho a lutar pela vida. Eu tentei perguntar o que é que se estava a passar, e quem estava a tratar esta criança. Nem eu sabia quem era médico, e quem era o quê, nem muito menos eles sabiam quem eu era. E aí percebi: a minha missão começa agora! O Yaros envolvido numa discussão de um outro caso qualquer, também não percebeu a gravidade do que se estava ali a passar. E eu disse-lhe “Yaros, pergunta quem está a tratar desta criança!”….. “Yaros, explica-lhes quem eu sou e que posso ajudar!”. Quando finalmente “agarrei” no médico responsável, este disse-me que a criança tinha engolido um objecto, ou seja, obstrução da via aérea por corpo estranho….. Mmmmm……cheirou-me a esturro! “Estetoscópio”, disse friamente. Auscultei e disse: “Não é um corpo estranho, é um ataque de asma muito grave!”. Riram-se de mim, vá-se lá saber porquê, mas já tinham decidido por aquele diagnóstico e não ia ser fácil demovê-los…
Muitas conversas entre eles deixam-me no escuro enquanto falam em Pashtun, e tenho de ser duro e incisivo no tom de voz, para que traduzam para inglês. O pai, em pânico, e a criança, entretanto, a perder a consciência. Apercebo-me de que o pai lhes disse que o miúdo tinha história de asma, mas mesmo assim insistiam que tinha um objecto estranho na traqueia, e planeavam fazer-lhe uma traqueostomia, coisa que não sabiam fazer, muito menos a uma criança tão pequena. A auscultação é cada vez menos informativa, pois a broncoconstrição é de tal forma grave que já quase nem se ouve a criança a respirar (silent chest). A criança está azul, inconsciente, e com uma taquicardia estrondosa…..
Finalmente consigo impor a minha opinião e tratamos como se fosse uma crise de asma, com broncodilatadores mais corticóides, e mais broncodilatadores e mais corticóides, ….. A criança melhora, o pai agarra-se a mim a agradecer, com as lágrimas nos olhos, mas o estado da criança, apenas evolui do péssimo para o ainda muito mau. Eu já tinha lido nos livros, mas nunca tinha visto uma asma assim…. A criança continua com a saturação de oxigénio no sangue muito baixa, apesar das melhorias. E eles insistem na hipótese do objecto estranho…..grrrrrr… mas há que ser diplomata e, como tal, propus-me a anestesiar a criança e visualizar as cordas vocais e a traqueia para não haver dúvidas, com a possibilidade de colocar um tubo na traqueia para melhor ventilar/oxigenar a criança…. E assim foi; nada de corpo estranho, e entubei a traqueia da criança…. A entubação numa asma grave é uma medida que pode ser “life-saving”, mas tem muitos inconvenientes e a necessidade absoluta de cuidados intensivos e, neste caso, pediátricos.
A criança melhorou, chegou a níveis de oxigenação aceitáveis, e estava anestesiada e em paz. E agora? O que fazer? Acabado de chegar, com uma criança com risco de morte iminente ligada a um tudo que só eu poderia manejar em condições, mas também sem capacidade/infraestrutura para proporcionar o tratamento necessário para salvar esta vida!! Que merda!! E agora?? Com os olhos húmidos do pai a olhar para mim, à espera dos meus próximos passos. Eu já estava decidido a ficar “agarrado” àquela criança o tempo que fosse preciso…. podem ser 2-3 dias até reverter uma asma destas….e naquele hospital tinha de puxar muito pela imaginação para ter condições para manter entubada uma criança esse tempo todo…. mas era esse o meu plano… Nem que não dormisse dois dias, não podia deixá-la morrer… Começam a dizer a palavra que até hoje, por muitos motivos, me atormenta: “ Peshawar, Peshawar”, famosa cidade de Peshawar, capital da província, que teria eventualmente muitas outras condições que nós não tínhamos…. “ok”, disse eu, “eu vou!”…. não podia! Regras de segurança, nem pensar em ir até Peshawar, cinco horas de ambulância….. E agora? Começam a convencer-me que a ambulância é fantástica que tem oxigénio, e que tinham enfermeiros com muita experiência para fazer os transportes…
Uffffffff……….. aperto no estômago…… Eu nem sei se eu conseguia manter a criança viva esse tempo todo e ia ter que delegar isso a alguém!?!??! O que fazer?? Enquanto ventilava a criança, com dificuldades pela broncoconstrição, chamei o tal enfermeiro para os transportes, e fui-lhe explicando o que fazer. Pareceu-me razoável (trabalhei com excelentes enfermeiros paquistaneses), ensinava-o como ventilar, as doses de Ketamina (para anestesiar a criança e como broncodilatador), e os intervalos de tempo. A situação parecia estável, muito grave, mas estável. Expliquei ao pai, com tradutor, o que se estava a passar, e em troca recebi várias promessas que Allah iria olhar por mim…. Dei ao enfermeiro o meu número de telefone e quando arrancaram para Peshawar, voltei para casa a sentir-me bem. Fui útil, salvei uma criança. Foi para isto que vim. E sabe tão bem. Dar vida e esperança a uma das zonas mais pobres e miseráveis do planeta….
Voltei para casa com o Yaros que me chamava de herói…. e só por isso já tinha tudo valido a pena. Talvez por isto já valha a pena deixar a minha mãe no aeroporto, com uma dor que ninguém merece…. E fui dormir o sono dos justos, exausto, com a sensação de dever cumprido e com o meu telefone ao lado para se acontecesse alguma coisa. O telefone não tocou! No news, good news!!! Ao pequeno-almoço já recebia os louros dos meus recém-colegas de quem ainda nem conhecia os nomes, e depois de uma noite gelada, o sol entrava forte no meio das montanhas e eu sentia-me fantástico. Tranquilamente fomos para o hospital e a primeira coisa que fui fazer, claro, foi saber da criança que foi para Peshawar. “Doutor, a viagem correu bem, mas a família era pobre, não tinha dinheiro para pagar o hospital em Peshawar, muito menos nos cuidados intensivos, tiraram-lhe o tubo da traqueia …….. e a criança morreu!”
Bbbbbuuuuuuuuuuuummmmmmmmmmmmmmmmm!!!!!!!! Que explosão no estômago!!
Bem-vindo ao Paquistão!!!!