Nunca compreenderei, nem nunca vou deixar de admirar a resiliência de alguns povos. Se acreditar e lutar pela democracia parece algo tão linear, quando nos apontam uma arma à cabeça nunca saberemos até onde tremem as nossas convicções…
Tendo em conta que a minha passagem pelo Norte da Síria, coincidiu com o Inverno, vejo no frio um dos maiores desafios ao carácter e à resiliência… Já passei por vários locais com temperaturas muito baixas (Afeganistão, por exemplo, abaixo dos -20ºC muitas vezes), mas nunca tive tanto frio como na Síria. Apesar de dormir numa casa de tijolo, e com alguns aquecedores a lenha… Passei dias e noites a morrer de frio… Estava sempre com frio, sempre! Durante o dia, usava dois pares de calças e trabalhava permanentemente de casaco de penas, e ainda assim quando estava sentado passava o tempo a esfregar as pernas para me aquecer, o que parecia nunca acontecer… De noite dormia com dois fatos de treino, vários pares de meias, dentro de um saco-cama de alta qualidade (tipo subida do Everest), e ainda com três cobertores grossos por cima. De gorro a tapar as orelhas, pouco ficava da minha cara para respirar… De manhã, a temperatura dentro e fora de casa era quase igual, e assim divertia-me com o meu bafo de vapor de água ao acordar, ou então ao abrir o frigorífico a ironia de estar mais quente lá dentro do que na cozinha…. O chuveiro era quente, e era dos poucos momentos em que me sentia confortável com o meu corpo…. E assim os dias iam passando…. cheio de frio! Mas, claro, eu não me podia queixar, tinha condições de vida muito acima da média dos que me rodeavam… E ao fechar os olhos de noite as imagens que dominavam os meus pensamentos eram dos milhares ou milhões, entre refugiados e deslocados, que estavam a passar por este Inverno rigorosíssimo em tendas de plástico congeladas, e sem as condições mínimas de vida… Crianças, mulheres, velhinhos, doentes…. a morrer de frio, sem um pingo de conforto, sem laivos de humanidade… E se da guerra, são as mortes de sangue que mais nos assustam… estarão certamente muitas mais mortes na cruel contagem das consequências indirectas da guerra, como os milhares que morreram de frio, quer na Síria, ou nos países que mais albergam refugiados sírios, ou até mesmo já na Europa. Milhares morreram de frio ao fugirem das bombas… é triste.
Um dia de manhã, contrastando com os dias quase sempre cinzentos, de frio e neve, estava um céu limpo e um sol radiante… Aquilo a que todos nós chamaríamos de um dia bonito. E assim, dentro do carro que me levava de casa para o hospital, comento com o motorista: “Que dia tão bonito de sol, finalmente!” A expressão do motorista quase me disse tudo, mas ainda acrescentou: “Não, Doutor, isto não é um dia bonito. O céu está limpo, eles vão voar!” Congelei, sem resposta, engoli em seco a minha gaffe… Fiz o resto do caminho hipnotizado a olhar para o céu limpo, e este novo sinónimo de dia de sol nesta parte do mundo…
Depois de chegar ao hospital, não tardou muito a sermos sobrevoados… E rapidamente soam os alertas de todos para todos: “MIG, MIG, MIG!!!” “Avião, Avião, Avião!!” O alerta é claro, e os passos a seguir também são bem conhecidos por todos… Vai tudo para o bunker! Não há lugar a perguntas ou hesitações. Vai tudo para o bunker. E assim todo o staff, assim como todos os doentes com condições para se deslocarem, tudo se mete entre as paredes, escuras, frias e grossas do bunker… Algumas grávidas em trabalho de parto, em grandes dificuldades, outras acabadas de ter o bebé ainda muito fracas, com a ajuda das enfermeiras lá iam para o bunker…. assim como muitos outros doentes, cujas doenças ou traumatismos não os impedissem de dar uns passos e ficar de pé… Os outros ficavam no hospital mais vulneráveis… embora na realidade o bunker servisse apenas para diminuir as probabilidades, pois se uma bomba nos caísse em cima já não tinha histórias para contar…
Estes momentos no bunker do hospital são estranhos… são frios e húmidos e muito escuros… reconfortamo-nos uns aos outros, com risos e piadas nervosas, na esperança de não sermos nós os escolhidos para ser o alvo…. Os céus são vastos, e os potenciais alvos daquele dia imensos, mas sabe-se lá o que vai na cabeça daquele piloto, pronto a deixar cair morte, tragédia, sofrimento e destruição… Tenho muita dificuldade em compreender os líderes raivosos, embriagados pela sede de poder, responsáveis por tantas mortes, mas também aquele que prime o gatilho… Como pode dormir este homem à noite? Como pode viver com a sua consciência? Chegando a casa, sabendo que largou bombas com mais ou menos critério e matou dezenas ou centenas de inocentes, de mulheres e crianças, e tudo um pouco….ou bastante! Quem são estas pessoas que não se questionam? Só podem estar com o cérebro lavado e paralisado por maldade e ódio…
Uma ou outra vez a sermos sobrevoados, ficamos no bloco operatório, e assumimos o risco de ficar mais vulneráveis para não deixar morrer o paciente… Parece-me óbvia e inquestionável a opção, mas no entanto algo estranho, apenas nós, os envolvidos na cirurgia, e os doentes mais graves ficávamos para trás… Probabilidades, é tudo uma questão de probabilidades…
Se os MIG assustavam bastante, pelo menos na minha pele os helicópteros assustavam muito mais… E a cada passo que um destes dois se aproximava do hospital, lá íamos todos para o bunker… Talvez por voar mais perto e mais lento, ou por fazer mais barulho, ou até talvez pelas imagens tenebrosas que tinha na cabeça, dos helicópteros a deixarem cair “barrel bombs”, muitas vezes em mercados, escolas ou hospitais, e feitas para destruir no maior raio possível…. Os helicópteros causavam-me particular desconforto… E nestes momentos restava-nos esperar que aquele dia não fosse o nosso dia…. e que aquele que nos sobrevoava, não decidisse premir o gatilho por cima das nossas cabeças….
Dias e dias no entra e sai do bunker, sem saber o que nos esperava… Algumas das vezes acabávamos por ouvir o mega estrondo ao longe, e mais tarde a chegada de dezenas de feridos… Nunca fomos um alvo do regime sírio de Bashar al-Assad, enquanto eu lá estive, no entanto dados dos MSF atestam que apenas em 2016, pelos menos 70 estruturas de saúde foram alvo do regime sírio e das forças russas que o apoiam, fazendo do ataque a hospitais uma declarada forma de guerra… Veremos algum dia os responsáveis por estes actos hediondos sentados no Tribunal Internacional a serem julgados por crimes de guerra?
Talvez preferisse o frio e a neve aos dias de…
Céu Limpo!