A Síria tornou-se no palco de guerra mais sangrento de que há memória! Imaginam se fosse o vosso país? Imaginem!! Porque eles também não o imaginavam… A tristeza de ter esta ferida tão sangrante e tão aberta faz também com que venha ao de cima o melhor de muitos seres humanos, e encontramos uma motivação para trabalhar que vai muito para lá do humanitário… Não há palavras para descrever a dedicação e entrega dos que “lutam”, trabalhando e arregaçando as mangas, sem armas, salvando vidas pelo seu país… Trabalhar lado a lado com o povo sírio foi, de longe, dos maiores privilégios que tive na minha vida…
E assim durante uns dias, a nossa equipa de expatriados juntamente com a maioria do nosso staff trabalhavam de gás a fundo, para que o hospital voltasse a estar operacional… Com isto, as vidas iam-se cruzando, e as histórias de vida de cada um apertavam-nos o coração até não conseguir respirar… A cada passo, mais certeza tinha que mais do que tudo era ali que queria estar… A mim coube-me de início ver se o bloco operatório estava operacional, no que à minha parte de anestesista dizia respeito, assim como à zona de reanimação do recém-nascido… Rapidamente me mostrei disponível para ajudar noutro sítio qualquer pois o nosso bloco tinha tudo e estava bem organizado… Dei uma mão e uma vista de olhos na esterilização, que por sua vez também funcionava com umas senhoras de muito pouca conversa (em inglês), mas muito rigorosas, metódicas e profissionais … E depois, enquanto os meus colegas faziam as suas tarefas, nas diferentes áreas do hospital: farmácia, serviço de urgência, maternidade, enfermaria, ambulâncias…. eu fui parar ao laboratório… Quem diz laboratório, diz Banco de Sangue, pois eram as suas funções praticamente exclusivas…
Os MSF com a sua super organização têm um livrinho só sobre transfusão sanguínea… E eu que nada percebia sobre o lado laboratorial do tema, pus-me a estudar esse livrinho de uma ponta à outra… Uma vez, no Congo, vi uma rapariga de 17 anos a morrer nas minhas mãos porque alguém se tinha enganado na grupagem sanguínea… traumatizou-me bastante esse momento, pois foi daquelas mortes completamente evitáveis, e em frente aos meus olhos… E tudo o que eu não poderia deixar acontecer era que isso acontecesse, e juntamente com alguns locais que já tinham experiência, recapitulámos as regras vezes sem conta…. até termos os passos todos automatizados nas nossas cabeças… No frigorífico estava ainda bastante sangue com meses de colheita…. e tudo teria que ser deitado fora….
E, como sempre, há muita coisa que fica “lost in translation”, pois o meu árabe só dá para meia dúzia de palavras…. e nestes entretantos, ainda o hospital não estava aberto e já tinham feito correr a palavra que estávamos disponíveis para colher sangue…. Quando eu ponho a cabeça de fora do compartimento que era o laboratório, vejo uma fila interminável de gente, novos e velhos, homens e mulheres…. desejosos de dar sangue! Vieram-me as lágrimas aos olhos, ao ver aquela gente, tanta gente, com tanta vontade de “lutar” pelo seu povo mas sem levantar armas… Enquanto se deitavam na cadeira das colheitas, não hesitavam perante a grossura da agulha ou as mãos firmes do enfermeiro, e diziam-me: “tudo farei para salvar a minha pátria” …. “Não sei se não serei eu a precisar”…. “Já perdi muitos da minha família por falta de sangue”… E assim ia conhecendo o coração daquela gente e o seu inspirador amor à pátria…. Pediam-me para encher dois sacos, perguntavam quando podiam vir outra vez…. E os que recusávamos por idade avançada, davam meia volta com olhos húmidos por não poderem contribuir para salvar o seu país…. “Doutor, eu sou forte , eu posso dar sangue!” imploravam-me, ainda que o seu aspecto exterior fosse de quem já não comia há uns dias… Gente humilde com um coração como eu nunca vi…
No sangue a correr… eu via a história recente daquele povo e eles viam uma forma corajosa de lutar pelo seu país, pela liberdade e democracia… Para mim a inspiração era a cada segundo…
E assim enchemos o frigorífico de sangue, verificado para as principais doenças contagiosas, e com o grupo sanguíneo ABO e Rhesus confirmado e reconfirmado… Era uma questão de pouco tempo até reabrirmos o hospital e uma questão de muito pouco tempo até precisarmos de muito sangue… Eu, além de aprender muito sobre a vida, aprendo também sobre muitas áreas da medicina que normalmente me estão demasiado distantes… É agradável a sensação de que se eu precisasse saberia o que é preciso para fazer um banco de sangue…
Já estava bem noite, e bem frio, quando acabei o meu dia de trabalho e saí do hospital para respirar profundamente sobre os meus pensamentos… Ao cruzar-me com os guardas do hospital, fico sempre maravilhado pelos seus sorrisos… No entanto, apetecia-me estar sozinho, como tantas outras vezes, e dei uns passos em direcção à vista (ainda que nocturna) para as montanhas… E começo a imaginar o tudo e tanto que se passa em redor destas montanhas ensanguentadas, quando começo a ouvir… primeiro muito ao longe, depois bastante mais perto… Não tenho dúvidas, mas como a minha mente já me pregou algumas partidas… dou uns passos atrás no sentido dos guardas do hospital… que claramente lêem nos meus passos, nos meus traços, a surpresa de quem está a ouvir aquilo pela primeira vez…. “Sim Doutor, é a música da Síria!!” dizem-me a rir-se…. Bastou-me chegar ao segundo dia para ouvir de bem perto os bombardeamentos… “Pum, pum, pum … pum, pum, pum!!!” Bem ritmado, bem intenso, bem forte a cada estrondo das bombas a cair, sei lá onde… Esta era a minha quarta guerra, mas tal nunca tinha ouvido, e bem que me impressionou… Embora o humor resiliente destes amistosos guardas me tenha ajudado de sobremaneira a aliviar o aperto que tinha no coração… “Doutor, o Bashar al-Assad disse que no final desta guerra só ficarão seis milhões de Sírios!”, num inglês muito básico faziam referência à vontade do regime de exterminar os 70% de sírios sunitas…. “Mas nós, Doutor, estamos preparados!! …. Por cada um de nós que ele mata, nós fazemos dois filhos!!” concluíram rindo-se às gargalhadas…
O primeiro dia de muitos, a sentir-me potencial vítima dos bombardeamentos, abriu-me o pensamento para áreas nunca antes viajadas…
Sou um alvo!
E embora goste muito pouco de clichés, esta missão mudou por completo a minha vida….