Tudo começa naquele local repleto de magia: o aeroporto… Sinto o romper do cordão umbilical ao passar o controlo de segurança… Respiro fundo e estou sozinho… Eu contra o mundo! Gosto dessa sensação de que já não posso olhar para trás… é só para a frente que estão concentrados todos os meus pensamentos, nesta missão que me marcará para todo o sempre… Olho à minha volta e sou apenas mais um, mas dentro de mim sinto uma força, uma energia, uma vontade de vencer inabaláveis… A cada contacto com desconhecidos, há uma voz dentro de mim que me domina: “Se soubesses para onde eu vou!” …. para onde todos querem sair…
E em três voos seguidos ponho-me em Hatay (ou Antakya), na Turquia, já bem na fronteira com a Síria… e aí, pelas caras, pelas roupas dos MSF apercebo-me que neste último voo já vinha parte da minha nova família… Aqui já estamos cinco elementos desta futura equipa do hospital do Norte da Síria… Não nos conhecemos, mas identificamo-nos de imediato, com expressões e linguagem comportamental semelhantes… um misto de excitação, cansaço, medo, entusiasmo e muita vontade de trabalhar…
O hospital para onde eu fui trabalhar tinha sido encerrado semanas antes pela crescente presença de grupos radicais… a quem nós chamamos hoje de Estado Islâmico… O Verão de 2013 foi um período de transição/modificação daquela que era a conjuntura dos territórios controlados pela oposição ao regime… Esta crescente presença e repressão de grupos radicais, rapidamente criou enormes condicionalismos na população síria, e claro no trabalho dos Médicos Sem Fronteiras…. Mullahs e Imãs, na sua maioria vindos do Iraque, povoavam as mesquitas da região, alterando as “regras do jogo”, e assim impondo uma versão do Islão altamente repressora e punitiva… algo completamente diferente da prática da esmagadora maioria da população síria, bastante moderada e equilibrada na sua forma de estar na vida… Esta mudança de paradigma, criou tensões e conflitos que obrigaram a evacuar o projecto e encerrar o hospital por falta de condições de segurança… E cabia-nos a nós reabrir o hospital e assim dar de novo alguma esperança àquele enorme pedaço de terra no norte da Síria, totalmente desprovido de estruturas de saúde, não fora os Médicos Sem Fronteiras…
Do aeroporto fomos directos para o hotel…. e aí esperava-nos a nossa chefe. Ela já estava em Hatay, há várias semanas, a planear e a orquestrar o regresso à Síria, e a reabertura do hospital… Fomos directos para uma reunião no quarto dela…. ainda estava meio desorientado da viagem e já estava a ser bombardeado com informação… A MTV (o nome da minha chefe) tinha 60 e muitos anos, enfermeira de profissão base e já com uma experiência de MSF absolutamente incrível… De imediato a MTV, entre cigarros consecutivos, começou a abrir mapas por cima das camas do seu quarto, daquilo que seriam os nossos próximos dias…. Até há pouco tempo a Turquia facilitava a passagem de elementos dos MSF, por uma fronteira improvisada que não era mais do que um arame farpado (que eu viria a conhecer mais tarde) e que encurtava bastante o trajecto… Mas com esta opção posta de parte, teríamos que dar uma enorme volta passando pela fronteira oficial na cidade turca de Killis… E o grande problema começa a partir daí quando a MTV nos mostra no mapa as inúmeras áreas em que, ao fazermos os cerca de 300 quilómetros por dentro de território sírio até chegar ao destino final, estaremos bastante expostos aos bombardeamentos frequentes…. As estradas são escolhidas minuciosamente na tentativa de serem protegidas pelas montanhas, mas algumas partes sombreadas a lápis cor-de-rosa no mapa, colocam-nos à mercê dos bombardeamentos frequentes do regime sírio…. É difícil não engolir em seco com a antevisão destes perigos… mas, paralelamente, a importância da nossa missão parece crescer ao minuto e a vontade de fazer o que me propus assim acompanha….
A cidade de Antakya, embora a escassos quilómetros da fronteira com a Síria, parecia ter todo um funcionamento normal…. A sul, uma parede de montanhas separava aquela cidade turca do maior inferno na terra do momento…. a guerra da Síria. Depois da dita reunião fomos beber um copo para descontrair e nos conhecermos… A conversa é boa, mas não consigo parar de pensar no que está a acontecer mesmo a sul, embora pareça tudo tão calmo e normal…. Fui dormir cheio de vontade do dia seguinte…. mas durante toda a noite ouvi bombardeamentos…. ou achei que ouvi porque, pelos vistos, tinha sido o único…. era tudo fruto da minha imaginação….
A viagem de Antakya até Killis não me deixou grandes memórias… mas a aproximação da cidade de Killis, que era mesmo na fronteira com a Síria, começou a abalar a minha estrutura….. Campos e campos e campos de refugiados até perder de vista a nascer por todo o lado… A fuga da guerra, mas a esperança de voltar mal esta acabe estacionou-os logo ali no primeiro ponto possível de quem saíra do norte da Síria em linha recta com Allepo e tantas outras cidades importantes…. É sufocante, asfixiante, desconcertante ver tanta a gente a viver em tendas de plástico mais ou menos improvisadas, com condições limítrofes de sobrevivência…. é assustador e revoltante…
Em Killis, o assistente sírio da minha chefe dá notícia pelo telefone a elementos do hospital na região de Idlib para onde íamos, que já estávamos na fronteira e em breve iríamos reabrir o hospital… Do lado de lá do telemóvel, ouvem-se gritos de alegria que nos aquecem a todos o coração…. Nessa noite dormíamos em Killis, antes de passar a fronteira bem de manhãzinha…. Escusado será dizer que há um “nervoso miudinho” que nos domina antecipando toda uma aventura que ainda nem começou… Vamos beber um copo e fumar shisha ao único bar de Killis que vende álcool. Seria o último durante muito, muito tempo, pois na Síria há tolerância zero por questões de segurança…. Nesse bar o avançar da conversa, a troca de diferentes sabores de shisha, e a construção do espírito de família de quem ia viver e trabalhar junto, dia após dia, sem folgas, num ambiente de grande stress… é contagiado por um grupo de sírios todos do sexo masculino e com roupas de quem estava bem na vida, que começa a dançar com um ânimo e uma festividade como se celebrassem um casamento… Trocavam sorrisos na nossa direcção e já bem bebidos dançavam como se não houvesse amanhã… Até aí tudo normal, o detalhe que me marcou até hoje foi que começaram a lançar notas para o chão… quanto mais dançavam, mais notas atiravam para o mesmo chão onde dançavam… seriam sete ou oito de várias idades, e entre abraços, risos, gritos e muita dança aos ritmos hipnotizantes árabes e/ou turcos… Observava-os disfarçadamente, mas dominavam completamente os meus pensamentos. A energia que transmitiam era uma mistura da alegria de um casamento com a tristeza de um funeral… Imagino uma salada de emoções de quem sente alívio por passar a fronteira e fugir a esta guerra estupidamente mortífera, com a tristeza de quem deixa para trás a sua amada pátria, sabe-se lá com quantos entes queridos ainda à disposição das atrocidades desta guerra…
Imagino que deixar/desistir da sua pátria e de tudo que ela representa será como abandonar para uma morte certa a nossa própria mãe….