Estranhamente, depois de já ter estado em muitas guerras, o sítio onde que tive mais medo foi no Porto. A primeira razão reside no facto de que a projecção das missões nos locais mais complicados nos leva a sofrer por antecipação aquilo que depois vivido assume uma dimensão completamente diferente, para melhor. A criação de monstros e fantasmas baseados na nossa ignorância levam-nos a ter medo, essencialmente do desconhecido. E isto é verdade em diferentes dimensões da nossa vida. Mas a pior vivência da minha vida até hoje foi logo após a minha missão na Síria.
Dois dias depois de ter chegado ao meu Porto seguro, de ter distribuído beijos e abraços aos meus queridos, com uma sensação de missão cumprida, alegria de voltar a casa e até algum alívio ao ver a guerra agora pelas costas… recebi a notícia que cinco dos meus amigos e companheiros foram raptados. Levados à força da casa onde eu vivi.
Recebi a notícia por email de um dos meus companheiros que, por sorte, não foi raptado porque estava no hospital. Ao ler este email o meu mundo desabou… Congelei. Incrédulo, tentando perceber se as palavras que eu estava a ler constituíam efectivamente a informação que estava a rebentar com o meu cérebro. Fiquei desesperado. Desamparado.
A história do rapto propriamente dito, não me cabe a mim contar. Aquilo que sei, não me sinto no direito de partilhar, pois pertence a estes cinco de diferentes nacionalidades, que um dia contarão ou não o pesadelo que viveram.
Por isso, o que vos vou contar foi como eu vivi, e que reflexões tive e tenho em resposta a um dos piores momentos da minha vida. Como sempre, da dor, do sofrimento, do trauma advém um crescimento interior muito sólido e profundo… Embora o grande desejo é que este abalar de carácter e personalidade nunca tivesse acontecido.
Sozinho no Porto, sem poder partilhar esta informação com ninguém, e sem que ninguém me compreenda, sofri em silêncio. Eu adoro a minha família e os meus amigos, mas a verdade é que nós ultrapassamos uma barreira que faz com que ninguém nos compreenda… ou, se calhar, sendo mais honesto, nem tento fazer-me explicar. Estes cinco “estrangeiros”, para a maioria das pessoas, são uma pequena notícia no jornal, mas para mim são amigos, companheiros, com quem convivi 24 horas por dia, e partilhei experiências fortíssimas que criam laços para a vida… Vivemos e trabalhamos juntos em condições extremas, e no final da missão deparamo-nos com uma admiração e amizade muito genuínas.
A sensação pior é não saber. Angustiante, asfixiante passarem-se dias, semanas, meses e nada saber… Não sabemos como vivem, como estão a ser tratados, tudo é uma incógnita que me causa dor… com uma probabilidade considerável de serem mortos… E quando extrapolamos o nosso sofrimento para os familiares mais próximos, todas as palavras pecam por escassas para que se consiga imaginar como estarão dilacerados os seus corações…
Eu tinha saído da casa que foi invadida pelos malfeitores dois dias antes do sucedido… Dois dias! Podia ter sido eu… E se um dia for eu? Valerá a pena correr este risco?
Esta pergunta dominou os meus pensamentos durante uns tempos: “ Vale a pena o risco?” E esta pergunta levou-me a uma encruzilhada: desisto, ou luto com mais força?
O obstáculo que eu enfrentava era enorme. Um rapto pelo Estado Islâmico passou-me uma tangente. Mas, ao mesmo tempo, pensava em tudo o que vi e vivi na Síria e no quanto estas pessoas precisavam de nós… De uma forma algo filosófica pensava em quanto vale a minha vida. Sim, tenho medo. Tenho medo de morrer, tenho ainda mais medo de ser raptado… Mas talvez tenha mais medo de não viver, ou de não viver uma vida de que me orgulhe e que faça sentido.
Quanto vale a minha vida? Valerá mais do que qualquer outra? Valerá mais do que muitas das que salvámos nos meses em que estive na Síria? Que fique bem claro que eu tenho reflexões maturadas que reflectem as minhas convicções profundas, mas não sei se em todos os momentos conseguiria ser coerente com tais pensamentos. O que é certo, é que tenho uma velha máxima, que todos devíamos acordar de manhã e olhar para o espelho e dizer: “Todas as vidas são iguais!”; “Todas as vidas têm o mesmo valor!” … e depois então começar o nosso dia.
Deixar de acreditar nos meus propósitos humanitários, ou deixar de os pôr em prática porque tenho medo, não me parecia o caminho a seguir. Não por ter dificuldades em enfrentar as minhas fraquezas, mas acima de tudo porque sentia que essa inacção seria alimentar os males deste mundo, os ódios e o terror.
Sim, tenho medo. Mas se acredito que todas as vidas têm o mesmo valor, se sei que o risco da minha pode salvar muitas outras, dei por mim a construir uma promessa muito sólida: “Desistir, nunca! Vou lutar com mais força!”
Alguns meses depois, para minha felicidade e êxtase, os cinco foram libertados… E eu continuo a tentar ser fiel à minha promessa.