13. Futebol, Armas e Heróis

Penso que o que mais me marcou no conflito sírio, ao conhecê-lo “por dentro”, além da intensidade e da dureza desta guerra, foi o quanto me identifiquei com a sua gente. Nós achamos que estamos muito longe de que tal nos aconteça, e assim espero… mas só assim será se olharmos “para o lado” com uma preocupação genuína, para que, por um lado, possamos ajudar quem precisa, mas, não menos importante, a aprendizagem seja contínua para não cairmos nos mesmos erros que levam a uma desgraça humana literalmente imensurável…

E como se explica que um país, de repente, rebente de norte a sul, de este a oeste… em tiros e explosões? Há sempre uma explicação política, de análise nacional e internacional, dos últimos 10, 20 e 100 anos… e por aí fora. E pese embora estas leituras serem obviamente cruciais, invariavelmente levam-nos a fugir do que devia ser sempre o epicentro da discussão: as pessoas. Porque as análises políticas são quase sempre desumanizadas.

Imaginem agora que, de repente, Portugal se racha ao meio numa guerra civil. Nós, que gostamos de bater no peito quando vemos a selecção. Imaginem ver o nosso país a sangrar. Imaginem ver a vossa querida cidade a ser bombardeada, com edifícios a caírem em destroços. Imaginem os vossos entes queridos a serem esquartejados perante a vossa impotência. Imaginem serem obrigados a pegar numa arma, para matar os vossos compatriotas, por vezes até familiares. Imaginem as vossas crianças a morrer à fome. Imaginem mulheres a morrer por falta de uma cesariana. Imaginem verem-se a viver numa tenda de plástico num Inverno de neve rigoroso, com pessoas ao vosso lado a morrer de frio. Imaginem terem de escolher matar ou morrer. Imaginem não saber se vão viver o dia de amanhã!

Foi isto que eu imaginei todos os dias.

E senti esta proximidade emotiva porque as pessoas que trabalhavam comigo me a fizeram sentir. Por terem vidas iguais às nossas, agora adaptadas à mais triste realidade. Porque perder a nossa pátria será como todos perdermos a nossa mãe ao mesmo tempo… E é muito intenso sentirmos tão perto o que este povo está a sentir. Lutam pelo que amam. Uns com armas e outros apenas com a alma.

Não sei em que circunstâncias o faria, ou se poderei dizer com certeza: eu nunca pegaria numa arma. Mas de uma coisa tenho a certeza, muitos dos que pegaram são iguais a mim.

Quando soube que aos domingos havia futebol na vila onde eu vivia, não descansei até conseguir “representar” o nosso querido Portugal com uns toques na bola. Perguntei a tudo e a todos, como, onde e quando era esse jogo, para que não corresse o risco de não jogar… Chegado o dia, parecia uma criança na manhã do Natal, tal era a excitação para mandar uns chutos numa bola. Pois é. A felicidade das pequenas coisas. Fui com um companheiro de trabalho sírio, e, para que não houvesse vacilo, cheguei para aí uma hora mais cedo. Era numa escola, onde se podia ver buracos nas paredes de alguns edifícios bem desenhados pelas bombas que as atravessaram. Aperta-nos o coração. E aquelas paredes já não ouvem aulas desde o início da guerra. E assim, a pior doença do planeta se perpetua: a ignorância. Mas o dia era de bola. O campo é de pedra/cimento, torto, irregular e pequeno… mas há balizas, e a bola é redonda. E eu não tardo a começar a brincar com a dita. À medida que os outros jogadores vão chegando, a coisa começa a ganhar forma. E eu, como não percebo nada de árabe, não sei sobre o que se fala, e só quero é que o jogo comece… Quase ninguém diz mais do que duas palavras em inglês… e por isso eu esforço-me para trocar sorrisos… E quando me perguntam “Where from?”, eu solto um rugido e bato no peito com força: “ Poooorrttuuuuggaaallllllllll”.

E assim começa o jogo. É sempre complicado jogar sem falar a língua, principalmente para quem tem um bocado de mau feitio como eu. O campo é muito curto para o número de jogadores, e por isso há muito contacto, muita luta, muita intensidade em todos os momentos do jogo… Eu grito, protesto… primeiro em inglês, mas como não me percebem, então mudo para o português… Para pedir bola, pedir faltas, e dar as minhas visões tácticas deste grande jogo… Devo parecer maluco, mas não consigo ser de outra forma… Agarro, e agarram-me. Uso muito o corpo, vou ao choque no ar e pelo chão… Irrito-me quando as coisas não saem bem à minha equipa, e festejo os golos aos gritos e abraços como se estivesse a jogar o campeonato do mundo… Não os conheço, mas naquele momento é como se os conhecesse desde toda a vida… E isso é lindo!

Chega a vez de dar o meu lugar para outros jogarem… e de pernas doridas mas coração cheio sento-me todo transpirado encostado à parede a ver a continuação deste jogo banal, que para mim significa o mundo. À medida que o coração se vai desacelerando, vou observando e analisando todos os que ali estão… E apercebo-me que há ainda gente a chegar, quer para ver, quer para jogar…. e muitos trazem uma Kalashnikov. Fico sempre desconfortável com a presença de metralhadoras, embora já tenho estado no meio delas muitas vezes… Mas o que me leva o pensamento é imaginar que estes rapazes que, como eu, sonham em jogar futebol ao domingo trazem consigo uma Kalashnikov, que estiveram e estarão bem perto de matar ou morrer. E são gente normal. Não são militares no verdadeiro sentido da palavra. São miúdos, alguns deles ainda sem barba na cara que, por circunstâncias da vida, lhes foi roubada a inocência. E ali estava eu a jogar futebol com o Free Syrian Army, sem saber… e a pensar na sorte que tenho de ter um país em paz, e a pensar quem seria eu se tivesse nascido neste bonito local na ponta do Mediterrâneo, nesta fase triste da sua História?

Pegar ou não pegar numa arma é uma questão que revoluciona o meu interior. Ser ou não ser violento? Por norma, nunca. Mas todos sabemos que infelizmente este nunca é recheado de utopia. Então num mundo real, em que circunstâncias estaríamos dispostos a matar? Qualquer pessoa minimamente inteligente terá sempre mais perguntas do que respostas…

E porque falamos de pessoas, as que mais me inspiraram até hoje foram aquelas com quem trabalhei lado a lado no hospital. Gente que decidiu lutar sem armas. Amar o seu país até à última gota de sangue, mas sem nunca fazer mal a ninguém. Antes pelo contrário: salvando vidas, interrompendo ou comprometendo as suas vidas para sempre. Todos aqueles que connosco trabalhavam no Hospital dos Médicos Sem Fronteiras, por todos os motivos e mais algum, são para mim verdadeiros heróis. Alguns resgatados de uma universidade interrompida pelas bombas, apressaram-se a fazer o papel de médicos e enfermeiros, e com a prática tornaram-se muito competentes. O que eu vi é arrebatador. Uma motivação diária que já se arrastava há alguns anos, de quem dá tudo a cada gesto, a cada suspiro, de quem luta para salvar o seu país… sem nunca levantar uma arma, mas salvando vidas… E com isso aquecer os corações dos milhões que estão à mercê de uma máquina de terror e vulneráveis a todos os tipos de doenças… Uma vontade de trabalhar que arrepia quem vê. Passamos dias e dias a trabalhar e algumas noites. Sempre ávidos por aprender, sempre com um sorriso na cara, sempre agradecidos, com uma garra inigualável entregavam-se a todos e a cada um dos doentes, celebrando cada vitória como sendo mais uma chama na esperança de manter a sua querida e amada pátria viva e de boa saúde, quando tudo parecia apontar para o contrário. Mas eles não. Recusam-se a aceitar que o sofrimento e a dor, sejam a única tinta que escreve a história do seu povo. E dia a dia não se cansaram de me provar que no meio da merda há pessoas absolutamente mágicas e inspiradoras. Que lição de vida!

Alguns passavam as noites em nossa casa, de forma a estar em stand by para ir ao hospital no caso de aparecerem urgências, e faziam-no com o orgulho de quem recebe uma medalha nos Jogos Olímpicos… e, para mim, a energia que me transmitiam valia mais do que todo o ouro deste mundo! Gente que luta sem armas… que palavras existirão que possam caber em homens e mulheres tão grandes.

O que mais me doeu na alma, nos meses que passei no meio destas pessoas extraordinárias, foi quando estávamos a ver televisão numa noite qualquer. Como o frio era de morrer e só tínhamos uns fogareiros rudimentares em algumas divisões, à noite juntávamo-nos todos na sala para estarmos mais quentes e, de quando em vez, com a televisão ligada, ora no Al-Arabia, no Al-Jazeera ou no France24, ora em inglês ora em árabe, consoante quem estivesse mais atento entre os muitos sírios e estrangeiros que ali passavam a noite. Por essa altura houve um encontro em Genebra a propósito da “paz na Síria”. E durante uns dias, ministros, presidentes, daqui e dali discutiram a paz na Síria… Com regozijo todos se congratularam pelo enorme sucesso deste encontro, em que as soluções estavam encontradas para o fim deste terrível conflito. Mas de olhos na televisão, algures no meio da Europa, à nossa volta as bombas continuavam a cair… Eu via as caras de celebração dos políticos e, muito timidamente, passava os olhos nas caras dos meus companheiros e amigos sírios, e nunca os tinha visto tão tristes… A falarem deles, das vidas deles e do país deles. E, no entanto, palavras ocas, nuas, desprovidas de conteúdo, sem qualquer ponta de verdade.

Na televisão passava em rodapé, a letras gordas: “Paz na Síria”… e nós a ouvirmos os bombardeamentos… Eu não tive coragem de dizer nenhuma palavra… Limitei-me a sofrer em silêncio.

Era com os tradutores com quem eu mais falava. Porque eram eles a nossa sombra no nosso dia-a-dia no hospital para nos permitirem interagir com os doentes, e porque a qualidade do seu inglês nos permitia aprofundar mais as conversas. Tinham formações bastante diferentes, desde professores, engenheiros, empresários… a quem a guerra desfez por completo a vida. Foram todos encostados à parede pelo regime para se juntarem ao exército e matar os seus, e perante a recusa de o fazer, foram obrigados a fugir e desertar ficando sem documentos e, muitas vezes, com as famílias do lado de lá das linhas de conflito. Muito moderados e abertos na sua visão da cultura, religião e mundo. Falávamos de tudo e de nada. Sonhos interrompidos pela guerra, sem notícias das suas famílias, e limitados pela falta de documentos. Ouvíamos música, fumávamos shisha, falávamos da vida… e quando a situação no hospital apertava, não se inibiam de nos ajudar, metendo as mãos em doentes ensanguentados…

Lembro-me de uma vez, quando recebemos dezenas de feridos ao mesmo tempo, e todo o staff do hospital entrou em alvoroço… e eu numa voz forte e firme várias vezes lhes disse, a todos: “Calma, calma… vamos trabalhar com calma!” É difícil ter calma quando as pessoas estão aos gritos e a morrer nas nossas mãos… mas é isso que temos de fazer para salvar o maior número de vidas possível. E muitas horas mais tarde, quando a situação já estava sob controlo, depois de alguns mortos e outros salvos… um dos tradutores vem ter comigo e diz-me: “Você nem imagina o quão importante é para nós, nestas situações, ouvir os seus apelos à calma… Já tivemos outro médico, há uns tempos, que nos dizia a mesma coisa, e faz toda a diferença. Sentimo-nos apoiados, protegidos pelo vosso discernimento e pela vossa experiência… Nós sabemos que temos de ter calma, mas é difícil. Já vimos muita gente a morrer, e não estamos preparados para isso. Eu era um empresário bem sucedido e agora sou tradutor porque vos quero ajudar a salvar a minha gente, a salvar o meu país… Mas nós não estamos preparados, e já vimos demasiada gente a morrer. São a nossa gente. Obrigado por nos vir ajudar.”

Eu olhei para ele e engoli em seco… não chorei ali… chorei mais tarde. Às vezes precisamos de pessoas francamente inspiradoras para que nos mostrem aquilo que estamos a fazer…

E são muitas destas pessoas que agora vemos a morrer nos barcos, atrás de arames farpados, enjaulados e tratados como lixo… são estes a quem chamamos de refugiados. Alguns deles meus amigos, alguns deles uma fonte de inspiração eterna para mim…

Verdadeiros Heróis.

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