A minha missão na Síria pressupunha que o meu Natal se passasse no meio da guerra, longe do meu mundo. Saber que não iria passar o Natal com os meus não me fez hesitar, tal era a minha motivação para vir, mas com a aproximação do dia comecei a ficar bastante saudoso. Há muito que não celebro o nascimento de Jesus Cristo, porque sou ateu, mas ainda assim adoro o Natal e o que ele simboliza para mim. A família toda à volta da mesma mesa… a memória das mesas anteriores… a celebração dos que ali estão… e a memória dos que ali estão no nosso pensamento, como a minha querida avó que vivia para unir a sua grande família… E com os amigos igual ou melhor … a família que os anos foram escolhendo, e quantos desejos de saúde, felicidade e amizade eterna cabem naquele forte abraço que deseja “Bom Natal”… E para mim, muito mas muito longe do que aconteceu há 2000 e tal anos, o que fica é um momento para dizer aos nossos queridos e queridas: “Eu gosto de ti!”
E passar esta época do “eu gosto de ti” tão longe, quer pelos quilómetros mas, acima de tudo, pela distância gigante que afasta estes mundos… foi difícil, foi triste e muito nostálgico. Porque eu não tenho os meus, e sei que eles não me têm a mim… Acho que o mais doloroso não é estar “sozinho” neste dia, mas sim imaginar a tristeza que causa aos que gostam de mim, no momento em que se sentam à mesa e eu não estou. E, além de não estar, no imaginário dos meus e dos que gostam de mim eu estou a correr perigos inenarráveis… e em potencial esses pensamentos não estão muito longe da verdade. Da minha experiência como médico, entre bloco operatório, cuidados intensivos e INEM, trabalhei quase todos os Natais da minha vida ou a 24 ou a 25, e o que mais me surpreendeu foi o facto de que no Natal não há só muitas alegrias, mas também enormes tristezas… Nestes dias em que a sociedade nos “obriga” a estar felizes, quando não o estamos o sofrimento é atroz. Famílias separadas ou gente mal-amada, ou as saudades dos que partiram, ou talvez o não ouvir o “eu gosto de ti” que esperavam, levam muitas pessoas ao desespero nesta época de alegrias que culmina muitas vezes em tentativas de suicídio… Já vi muitos. É uma época perigosa no que diz respeito à gestão de emoções, e a minha dor e saudade prendiam-se essencialmente com o efeito em potencial que a minha vontade em salvar o mundo pode ter na felicidade das pessoas de quem mais gosto. É duro.
Nestas alturas (e não só) ouve-se muitas vezes frases do género: “rezemos pelos cristãos da Síria” … e como eu estou rodeado de muçulmanos cuja vida para mim não vale nem mais nem menos que a dos cristãos, não consigo encaixar estas frases de ânimo leve. Seria assim tão difícil para os que acreditam que as rezas nos levam a algum lado dizer: “rezemos pelas pessoas da Síria”? Eu desprezo a primeira frase e sendo não-crente aplaudo todos os que se aproximam da segunda.
É estranho passar o Natal longe, mais ainda num país onde ele não existe. Da mesma forma que nos países ocidentais a celebração do Eid nos passa completamente ao lado, nos países muçulmanos o 25 de Dezembro é um dia igual aos outros. Mas as pessoas que trabalhavam connosco eram muito especiais, e apercebendo-se da importância que o Natal tem nas nossas culturas, decidiram não deixar passar este dia em claro. Enfeitaram as paredes com meia dúzia de coisas improvisadas e fizeram-nos um bolo. Um bolo qualquer que imagino não corresponder ao Natal de ninguém, ainda assim a atitude é que conta e foi muito bonita. Juntámo-nos à volta da mesa todos os presentes. Muitos muçulmanos, alguns cristãos e alguns ateus a olhar para um bolo sem saber bem o que dizer ou fazer… Uma convivência estranha, inesperada e inusitada, mas sentida! Com uma amizade e respeito mútuo em crescendo e uma admiração recíproca que fica para a eternidade… A olhar uns para os outros e para o bolo que ia sendo cortado, com os tímidos “Merry Xmas”, que se traduziam mais uma vez num “Eu gosto de ti!” com um sabor especial por ali unir pessoas, culturas e religiões tão diferentes que normalmente não se tocam…
Ali estávamos, tímidos mas a sentir, quando se houve o rádio com apelos vindos do hospital!! Cesariana, urgente! E é quase sempre assim, num cenário de guerra onde quase toda a gente imagina que o nosso trabalho é apenas e só tratar os feridos do conflito, há todo um mundo de cuidados de saúde que fica a nu, que nós tentamos cobrir para minimizar o sofrimento deste povo. E as cesarianas dominam muitas vezes as acções dos blocos operatórios, pois por pior que seja o conflito, a vida continua, e ainda bem que assim o é.
A noite está gelada, mas a urgência dos acontecimentos aquece-nos de emoções fortes… E muitas foram as noites em que assim foi… num silêncio ensurdecedor, no meio das montanhas mais sangrentas dos nossos dias, há meia dúzia de pessoas que rompem pela noite para salvar duas vidas… para que hoje e amanhã ninguém tenha dúvidas que todas as vidas são iguais!
A nossa máquina está bem oleada, e não tarda a que este bebé nos esteja a gritar bem alto… “Eu gosto de ti”. Tudo o que queríamos ouvir. É uma mistura muito grande de emoções, na noite de Natal a magoar aqueles de quem eu mais gosto, mas a participar no milagre da vida, no meio de um teatro de morte, faz-nos pensar que se o Natal significa alguma coisa, é isto! É um “eu gosto de ti” para os que conhecemos e para os que nem sabemos quem são, mas que merecem de igual forma, o espírito natalício, seja lá o que isso for…
A vinda deste bebé natalício ao mundo em boa saúde, e um pós-operatório linear da sua mãe, levaram-me a pegar no telefone para ver que notícias vinham do meu mundo (visto que em casa não tinha Internet, apenas no hospital). E não há palavras para descrever as emoções de quem lê os seus, num misto de saudades e alegrias de ter tanta gente boa perto de mim que me desejam um “eu gosto de ti” de uma forma tão calorosa que me tranquiliza o meu sentimento de culpa por ter vindo para tão longe…
Culturas, religiões, aniversários de profetas, bolos, vida no meio da morte…
“Eu gosto de ti!” na Síria.