10. De Volta às aulas com os Taliban (1)

Vejo e revejo, para a frente e para trás, o filme das minhas memórias…. Algumas já enevoadas, fogem-me os pormenores…… e tanta coisa já vivi entretanto… Mas foi tanto e tão forte o que senti, que me custa largar as minhas recordações do Paquistão sem vos dizer mais algumas coisas….

Pergunto-me, muitas vezes, como se explica? Como se põe por palavras aquela realidade? O que posso fazer para vos transportar da cadeira até àquele ponto tão longínquo….

As incríveis montanhas do Noroeste do Paquistão.
O Noroeste do Paquistão é incrível para o bem e para o mal, extremamente montanhoso, entre a cordilheira do Hindu Cush e os picos mais agressivos dos Himalaias…. fica uma zona de uma complexidade estratégica, de difícil compreensão…. País “novo” que encontrou a sua identidade no Islão, após a “libertação”, por parte dos britânicos, do subcontinente Indiano, houve a necessidade de dividir este brutal pedaço de terra, de forma a que os muçulmanos ficassem com a sua própria terra (mas muitos ficaram na Índia), e assim se criou este país….. aquilo que conhecemos hoje como Paquistão, e ainda o Paquistão Oriental, que entretanto, também à custa de milhares e milhares de vidas, se emancipou para se tornar no que é hoje o Bangladesh….

A separação do grande Irmão Indiano, moderada pelos Britânicos, foi brutal. Levantou, acordou e catapultou os ódios entre religiões e povos, e deixou profundas feridas nos irmãos, agora de costas voltadas, ficando esse ódio de estimação, com a sua representação no fantástico território de Kashmir, o conflito mais alto do mundo… com posições militares acima dos 5000-6000 metros, com posicionamentos sazonais, mas que nunca dormem…. E talvez aqui esteja o conflito mais antigo do nosso presente desde a partição em 1947….

Do outro lado, a linha de Durand…. mais uma “fantástica” ideia, da então grande potência mundial, o império Britânico, que assim desenhava o que queria do subcontinente, não arriscando tocar nos sempre bélicos Afegãos….. Mais tarde, esta linha daria os limites a um dos maiores confrontos de gigantes de sempre no “Great Game” entre Rússia e Império Britânico…. O problema é que aqui nasceria uma divisão artificial do povo Pashtun, cuja identidade é demasiado forte para que se abdique da unidade….. Etnia dominante no Afeganistão, em números e em poder político, os Pashtun, sempre tiveram uma grande facilidade em saltar a fronteira que, para eles, no fundo, no fundo …..não existe.

E assim cresce o Paquistão, centrado no Islão, ódio histórico com a Índia bem mais poderosa e numerosa, e a fronteira “dos Pashtun”, com o Afeganistão…..

Vida política deste jovem país, com grande instabilidade, corrupção e dificuldade em unir várias culturas e várias línguas que este país grande e populoso continha….. Golpe de Estado atrás de golpe de Estado, levam à alternância entre democracias de fachada e regimes militares……. e duas famílias que alternaram o controlo do país, a mais famosa das quais os Bhuto …..pai e filha (Benazir) símbolos marcantes, envoltos em polémica e cuja história acaba sempre em mortes trágicas….

A relação com os USA, então, é tão fantástica como difícil de entender….. Melhores amigos que se odeiam!!! Difícil, eu sei…. mas é qualquer coisa assim…. Já muito li sobre o assunto e quanto mais leio, mais dúvidas tenho….. O Paquistão precisava de um amigo mais forte, para que a super poderosa Índia não lhe pusesse com facilidade a mão em cima, (o que fez p.e. facilmente ao “libertar” o Bangladesh do poder de Islamabad), e os USA precisam de travar os russos nesta frente da Guerra Fria tão importante como era o Afeganistão….. E em troco de milhões e milhões de $$$$, os USA, podiam ajudar os Mujahideen do Afeganistão, através dos Serviços Secretos Paquistaneses, sem nunca saberem muito bem a quem estavam a passar cheques em branco….. Assim, o Paquistão é o segundo país do mundo que recebe mais $$$ dos USA (depois de Israel), mas é também a maior fonte dos seus problemas….. O grande formador do Islão radical…. que serviu para combater a Índia e Kashmir, para alimentar a grande guerra Islâmica, que acordou o Islão político a nível mundial, entre os Mujahideen e os Soviéticos, e para, hoje ainda, através das suas madraças, reunir militantes de todo o mundo, para lutar contra as grandes causas do Islão político, sobre aquilo que muitas vezes gostamos de chamar Al-qaeda….

E toda esta embrulhada, cada vez mais globalizada, em termos dos seus perigos, só podia, claro, florescer numa zona pobre, inóspita e de difícil controlo…. O Noroeste do Paquistão…. envolto por montanhas e com um clima que impõe respeito, este canto de terra tão bonita, perdido entre a estratégia dos grandes mundos….. é uma região muito pobre, perdida no tempo, e devido ao grande carácter guerreiro deste povo Pashtun, só foi possível controlo pela ambição sempre corrupta de Islamabad tirando-lhes os livros e islamizando-os ao extremo como os vemos hoje…. E assim estamos.

A execução sumária de Bin Laden (felizmente para mim, dois meses depois de ter de lá saído), em território deste país soberano (talvez com a conivência dos S.S. Paquistaneses, a troco sabe-se lá de quê), e a ocupação do Afeganistão desde 2001 pelos USA e Aliados, numa terra que a História já nos ensinou demasiadas vezes que ninguém controlará, ….. tudo isto e muito mais tem contribuído para que os ódios aumentem, e a separação entre Islão e Ocidente se acentue ….

Uma vez perguntei a um enfermeiro porque não gostava dos USA ….. Mustafa era o melhor enfermeiro com que já trabalhei, pouco mais novo do que eu, muito inteligente e bem-educado, e calmamente respondeu-me: “Sir, they bomb our houses, they bomb our villages, they kill our kids, our wives, our families…. if I could, I would kill them too! “ ……. até quando??? Quando é que iremos perceber que violência só gera violência…. Que a magnífica obra estratégica, em que todo o mundo bateu palmas, do assassínio de Osama Bin Laden, mesmo sabendo o monstro que ele era, nada resolveu e apenas veio dar combustível para a máquina do ódio …….

Bem, suspiros e reflexões, de quem sabe pouco, mas viu e viveu nesta realidade tão forte e donde saí com muita esperança ……. chocado, mas com muita esperança…… porque conheci pessoas magníficas e um povo maravilhoso, afável e acolhedor….. e se nos sentarmos a beber um chá ao mesmo nível, faremos amigos para sempre….. adorei viver lá, e queria sugar aquela cultura o mais que podia, li os seus livros, vi os seus filmes, ouvi a sua música, e sentava-me com os empregados a ver o Mundial de Críquete, sem perceber muito….. claro que comia tudo o que comiam, bebia 20 vezes “Xai” por dia, e aproveitava todos os momentos livres para falar com os enfermeiros, guardas, cozinheiros, etc….. para melhor os entender….. Como já disse, adorei. Fiz amigos sentidos, e despedi-me de abraço apertado e lágrimas nos olhos…… mas metade daquele povo, eu não conheci! As mulheres! As mulheres só falam com mulheres….. E as poucas enfermeiras com quem eu trabalhava, eram apenas vultos, …..dentro do hospital, sem burqas, mas todas tapadas, apenas com 2 cm que deixavam ver os olhos, bastante cumpridoras e profissionais, mas quando me dirigia a elas, as únicas respostas eram: “No, Sir”, “Yes, Sir”…… e mais nada…… e sentia que tinham medo de falar connosco….. pois tudo pode ser malvisto, mal interpretado, e fortemente condenado pela sociedade, altamente repressora….. em que tudo é proibido!

Gosto de acreditar que deixo um legado…… e gosto de ensinar; acredito que são essas sementes que, a todos os níveis, vão mudar o mundo…… E as vidas por mim salvas, são fantásticas para mim, mas dada a sua insignificância estatística…… o que eu acho que fica mesmo é a formação, para que outros possam fazer o que eu sei e aproximar a sua medicina à melhor que se faz no mundo….. E assim salvarem o seu próprio povo…… Aprender, Fazer, Ensinar….. a medicina é isto! E assim procuro ver onde estão as falhas mais graves…… é difícil …. são tantas…. o conhecimento médico é paupérrimo, e todo o sistema é uma manta de retalhos, mas tem que se começar por algum lado…..

Foi-me proposto pelo médico responsável pelo Serviço de Urgência, que desse uma formação sobre Suporte Avançado de Vida, ou o que se diz em linguagem mais leiga ressuscitação cardio-pulmonar…..salvar vidas! E assim fiz, com bastante experiência nessa área, adaptei-me à realidade local e às condições possíveis, preparei uma apresentação powerpoint, e reuni as tropas…. Médicos, Enfermeiros, da urgência, bloco operatório e internamento e mais não sei o quê ….. Custa-me preparar, mas depois adoro, o desafio de ensinar, de cativá-los, de lhes acender as luzes da ciência ….. de os pôr a pensar e ajudar a compreender….. E vejo naquela hora/hora e meia a grande oportunidade de deixar a minha marca, de fazer com que tudo valha a pena, de dar o meu contributo, para a resolução daquele Paquistão radical e do tão assustador Islão político….. Vejo ali a minha oportunidade de deixar sementes de paz, para que vejam no meu empenho de quem veio de tão longe para salvar as vidas do seu povo, a inspiração de fazer mais e melhor, só porque sim…. Think Global Act Local….. são os meus 15 segundos de fama, é o meu momento ….. os holofotes de três ou quatro dezenas de locais, estão apontados para mim….. e eu vou usar a ciência para os cativar, e deixar em cada ensinamento médico a mensagem subliminar de quem quer chegar muito mais longe….. dizer-lhes que uma vida é uma vida e temos que dar tudo por todas….. Sabendo que sou apenas um médico, mas com um ser humano por trás que também quer falar…..

Cada vez gosto mais de andar de Shalwar Kameeze…. já me sinto super confortável, e assim me apresento todos os dias, é melhor do que andar de fato de treino, …. é super espaçoso, e por cima o colete dos MSF que nos identifica e assim vamos nós…. por volta das 10:00 da manhã, numa pequena sala do hospital, sem nada no seu interior, com o propósito de local de culto para as cinco rezas diárias dos muçulmanos, preparo eu a minha logística, com computador, projector, cadeiras, bancos corridos….e assim fica transformada a sala de orações, numa sala de formações….. E o meu público vai entrando…. entusiasmado, pois para eles também é um dia especial….. é raro terem formações…. e a sala enche-se….. todos muito juntinhos, uns de cócoras como tanto gostam, e alguns de pé…. E eu apresento o meu “número”, ao bom estilo ocidental, com informação bem organizada, imagens didácticas e um “embrulho” bem bonito….. Fármacos, ventilação….. as mais frequentes causas de paragem cardíaca, como olhar para a clínica, como as identificar….. e como as tratar…. Não é fácil transmitir-lhes o espírito de missão que a mim me envolve, todos já viram aldeias a serem bombardeadas, ataques suicidas, e muito mais….. Todos os dias saem de casa sem saber se o exército os deixará vir trabalhar….. dormem sempre preparados para fugir….. vivem o seu dia-a-dia como se fosse normal…… mas não é! É uma zona de guerra, onde por cada bomba que chega aos canais noticiosos internacionais rebentam 100!! É inquietante, desconcertante…. a vida desta gente….. e é a estes a quem eu me proponho falar de ciência…… Ufffff….. muitas vezes leio o que lhes vai na mente: “Consegues fazer parar as bombas de cair!?!?” ……

Mas faço tudo para puxar os seus pensamentos para o homem, a máquina do ser humano, no seu sentido puramente funcional….. E chega a parte das dúvidas. O seu inglês é razoável, mas a dicção é quase imperceptível….. Ficamos numa boa conversa…… A sua ignorância assusta-me, a forma como construíram o seu pensamento médico é assustadora, e estão carregados de falsas-verdades, que custam a desmistificar…… Ideias da idade da pedra, que lhes foram cravadas pelo professor não sei das quantas….. e que me custam a mim, muito do meu latim, para lhes reconstruir o raciocínio com “tijolos” de ciência…. Missão cumprida…. foi um sucesso….. uma formação, não dá para nada…. mas acendi umas luzes, libertei-os de falsos pressupostos e pu-los a pensar….. consciente ou inconscientemente, gosto de acreditar que deixo uma semente de esperança, de ligação entre povos, e de paz…… Ali está um médico, dos MSF, da Europa, de Portugal….. do Ocidente…… que se importa….. que tudo fez para salvar as vidas das suas gentes…. e ali estou, sem dúvida alguma, a falar com conhecidos, amigos, familiares, dos Taliban e da Al-qaeda….

O meu coração está cheio, missão cumprida….. e com muitos sorrisos e cumprimentos sou parabenizado por toda a gente….. E é neste calor humano, que para mim tudo vale a pena…… Viver numa prisão, reprimido, absolutamente controlado, a sentir-me um alvo na cabeça de muitos dos que me rodeiam…. mostro que salvo vidas, que ensino a salvar vidas, que me preocupo, e quero que eles se preocupem….

Inspiro-me, inspirando-os!!

E é aqui que eu acho que os MSF são: O elo mais forte!!!

Na formação, na educação, na esperança, na ligação entre os extremos…. sendo um dos elos mais fortes a tentar aproximar esta distância brutal de duas “placas tectónicas” ….. O Ocidente e o Islão Radical…..

E quando tantos elos se partem! Este é: O elo mais forte!!!

De volta às aulas com os Taliban!!

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