1. Agora, o Paquistão

Eu tinha de escrever, a minha cabeça estava prestes a explodir com tantos pensamentos cruzados… Eu quase não dormi… o que poderia ser considerado normal tendo em conta as quase 12 horas de jet lag, dos últimos dois dias… mas menos compreensível depois de me ter deitado com uns copos… Mas sentia as minhas ideias a voarem de um lado para o outro, e por isso uma enorme vontade de escrever, com a única certeza que me vou perder na minha escrita e que 90% ficará por dizer… Os altifalantes aos gritos às 5 a.m., para as orações da manhã, também não ajudaram…

Vou tentar pôr aqui alguma ordem às minhas ideias…

O motivo pelo qual comecei a escrever este blogue, nasce de um desejo enorme de fazer conhecer uma terrível realidade que acontece a cada dia enquanto vivemos as nossas vidas “normais”, e que 99,9% da população mundial não faz a mínima ideia de que existe, como é o caso da guerra do Congo com tantos anos e tantas vítimas, em que me choca como é que os media mundiais insistem em esquecer… Contando histórias de vida que eu vivenciei de bem perto, pareceu-me a melhor forma de fazer a minha voz insignificante, ser ouvida… e com fotos por razões óbvias… Por mais que eu consiga escrever e descrever, nada substitui o impacto de ver estes mundos a cores que nem nos filmes de Hollywood conseguimos ver… E com isso quero dizer que nunca esquecerei o Congo, de uma forma que até me dói o coração quando penso no tanto que ainda ficou por dizer… Mas tenho uma vida e um trabalho a cumprir… muito para lá da escrita!

Inglês ou Português? Bem… esta questão fez-me dar pelo menos umas 20 ou 30 voltas na cama quando tentava dormir… Orgulho intocável no meu país e na minha língua materna; escrever em inglês levanta uma batalha dura entre as minhas vontades… Em português seria muito mais fácil de fluir e tornar as minhas palavras mais ricas… Mas em inglês tenho aquela sensação que consigo chegar mais longe… acho que é o meu lado de idealista adolescente, que eu gostava de nunca perder… Algumas pessoas que se tornaram importantes na minha vida, não falam português, além de que, aqui no Paquistão, o inglês será a minha língua e o meu inglês escrito precisa de prática e ainda para mais em Abril tenho um exame muito importante em inglês, para obter o meu European Diploma of Anesthesiology and Intensive Care… Com humildade mas muita ambição, eu gostava que as minhas palavras, que relatam vidas dos que não nasceram na zona sortuda do mundo, cheguem ao maior número de pessoas possível… Então, inglês será! A não ser que alguém se ofereça para traduzir e aí não terei de trair a língua de Camões…

Nunca tive intenção de fazer nada do género de “meu querido diário…”, mas vou partilhar os meus pensamentos e tentar responder às questões que as pessoas me perguntam com grande interesse…

Onde tudo começa e acaba… O aeroporto! Foi muito mais duro na primeira vez… Ainda assim, quando deixamos os nossos entes queridos para trás, e partimos sós “contra” o mundo… a aventura começa… Pouca roupa na mochila (e que estúpido sou eu, porque está um frio de rachar para onde eu vou), livros de medicina, alguns livros sobre o Paquistão, um livrinho para tentar aprender umas palavras de Urdu (a língua mais falada no Paquistão) e Pashtun (a língua mais falada na região para onde eu vou) e uma carga de relatórios e documentos sobre a missão… e adivinhem o que vai fora da minha mochila? Exibindo-o o mais que consigo, representando tudo o que eu gostava de levar comigo mas não posso, a minha cidade, a minha cultura, os meus amigos, a minha família… o meu mundo: o meu cachecol do FCPorto! Quando tenho uns minutos para parar para pensar… seguro-o com firmeza, aperto-o com força… e dou-lhe beijos! E as lágrimas caem-me enquanto já começo a sentir saudades no imediato de tudo o que deixei para trás… Meu Deus! Amo tanto o meu mundo! Provavelmente a gente de negócios que vai no mesmo avião que eu para Frankfurt, começa a perguntar-se o que se passa de errado comigo… Nada! Na verdade, são lágrimas de alegria… lágrimas de saudades… que me fazem sentir extremamente feliz por estar vivo, e são a prova de que sou uma pessoa muito sortuda! 

E eu continuo a ler a autobiografia da Benazir Bhutto, ansioso por ver tantas das coisas que ela descreve sobre o seu país… Uma noite de escala em Frankfurt… provavelmente no hotel mais barato das imediações do aeroporto… mas muito melhor do que eu estou habituado… Não posso dizer que não gosto de lençóis macios e suaves, chuveiro fantástico e um super pequeno-almoço buffet…

A caminho de Abu Dhabi… Mas onde é que é Abu Dhabi no mapa? Ah, ah! Parece bonito! A voar com a ETIHAD dos EAU… duas palavras sobre esta companhia aérea: Ohhhhh Yeaaahhhhhh!!! As hospedeiras são bonitas, simpáticas e falam todas as línguas… Um comissário de bordo do Líbano é tão simpático que até ficamos amigos… Entre todos os melhores filmes recentes, videojogos, comida maravilhosa e a minha vontade de devorar as leituras sobre o Paquistão e a minha missão que agora começa… eu queria que este voo de 8 horas durasse para sempre!

Parece bonito durante a noite, Abu Dhabi… e fico com muita vontade de um dia conhecer estas terras…

E aqui as coisas é que começam a ficar interessantes… Que mundo tão diferente, de pessoas diferentes, enquanto eu atravesso o aeroporto para a minha próxima porta de embarque… E depois, aquilo que eu já suspeitava… Islamabad/Paquistão não é um destino turístico muito concorrido, e eu sou o único no avião sem vestes Árabes/Muçulmanas, a maioria das mulheres vai de burka e a paranóia, que já li algures, que é uma ofensa apenas se olhar para elas começa a dominar-me os pensamentos!

Tenho de me habituar…vai ser muito “pior” no local para onde eu vou… Tenho de fazer um reset na minha cabeça sobre alguns assuntos… mas leva algum tempo! Mais um voo curto mas fantástico da ETIHAD… E chego ao Benazir Bhutto International Airport, em Islamabad… A polícia fronteiriça tira-me uma foto, verifica o meu passaporte, e pego na minha mala… na expectativa de ver o que está do outro lado das portas de saída do aeroporto… Lá estará alguém à minha espera, o que me faz sentir bastante importante ao ter alguém com o meu nome num papel para me levar ao meu destino… 

Mais uma passagem pela segurança, onde não me dão muita atenção, talvez porque não pareça um rapaz muito explosivo…. e sigo para as portas de saída! …. É daqueles momentos em que tenho que respirar fundo e inspirar-me enquanto digo a mim próprio: “Vamos lá embora c%#$&#%#$!” As portas abrem-se e….. Mãeeeeee, quero ir para casa! Estou a brincar. Mas o choque é de arrepio na espinha… centenas de paquistaneses amontoados, prensados mesmo à saída… (já tinha lido que eles gostam muito de multidões)… Mas estou todo motivado, até porque tenho o meu cachecol do FCPorto com super-poderes! Defino o meu plano de ataque para furar a multidão, e vou determinado em direcção aos quatro ou cinco homens que têm papéis na mão com nomes escritos… Nunca antes tinha desejado que o meu nome fosse Yang ou Smith ou qualquer outro nome que me levasse embora daquele inferno… porque o meu nome não estava em lado nenhum… e lá se foi o meu sentimento de me sentir importante… Enfrento corajosamente outra vez a multidão para um lado e para o outro, e não encontro ninguém com o meu nome ou com MSF escrito em algum lado…. Mmmm…. parece que temos aqui um pequeno problema! São 3 da manhã, está gelado e a chover, estou em Islamabad, não tenho números a quem ligar, nem nenhuma morada para onde ir…. e estou em ISLAMABAD! Sou abordado, a roçar o massacre, por inúmeros homens, sem serem agressivos, que me propõem táxis (e eu adorava aceitar, mas não sei para onde ir) e propondo-me telefonemas com um tipo de telefones estranhamente portáteis porque parecem telefones de casa que eu já tinha visto no Ruanda antes (eu também tenho telefone… só não sei a quem ligar!)… Tu tem calma, Gustavo, ainda tens o teu cachecol que te protege… e o meu guia da Lonely Planet do Paquistão (que eu comprei, não para viajar mas porque acho uma boa forma de aprender sobre o país) que poderá ajudar-me a encontrar um hotel para onde ir… 20 ou 30 minutos de dilema entre rejeições de táxis e telefonemas… e aparece um paquistanês com um papel com o meu nome e o logo dos MSF… Se o visse em Portugal à noite acharia que me ia roubar… mas naquele momento achei que era o meu melhor amigo! 

(vou ter de parar e de deixar a história aqui… tenho de sair para ir comprar as roupas locais, para usar no terreno… o Shalwad Kameed! É sexta, o seu dia sagrado e as lojas fecham às 12.00…) 

Leave a Reply