Já no Congo, província de Norte Kivu, Masisi. Algures ainda muito fresquinho, no início da minha temporada no Congo. Nesta altura era tão difícil lidar com as emoções que tentava não o fazer. Escrever, era sinónimo de lágrimas, e esta foi das poucas vezes que o fiz, e apesar de quase não dizer NADA, custou-me imenso. A inexperiência que revelo, mostra uma ingenuidade da qual tenho muitas saudades…. Até mentia, para não dizer o que estava a sentir! Agora, bem ao longe no tempo e no espaço, recordo com muito carinho, este email geral, que foi quase uma excepção à regra. Bons tempos. Saudades! Algures em Julho de 2009.
Olá a todos,
Escrevo-vos porque sei que muitos de vocês gostariam de saber algo sobre o que se passa comigo… Faço-o quase por obrigação e talvez perceberão porquê com o decorrer do texto…
Cheguei a Kigali, na 4ª feira, com o Genocídio de 1994 na cabeça, imagens do filme Hotel Ruanda e com toda a carga emocional que este país significava para mim… mas não, aparentemente estava bastante enganado ou desactualizado… É um pais tranquilo, aparentemente seguro, onde as coisas funcionam relativamente bem para o padrão dos países africanos… mas é África! Tudo é diferente… Dormi uma noite num hotel bastante razoável… onde os empregados estavam “colados” no Michael Jackson memorial…… f#$%$&”#!! No dia seguinte acordei às 5.30 porque vinha um gajo buscar-me para atravessar a fronteira e levar-me até Goma (cidade logo após a fronteira)… Não posso dizer que tenha visto muito de Kigali mas é uma cidade altamente, toda ela monte acima e monte abaixo…. incrível mesmo foi a minha viagem até à fronteira. Foi incrível também…. o sol a nascer e a paisagem de montes atrás de montes com vistas incríveis! Estradas africanas… inexplicável…. o que se vê à beira da estrada, por si só dava para escrever um livro…. mas neste momento não estou muito virado para o feeling descritivo…. Nada para comer…. porque isto é assim…. na estrada não há nada! Foram três horas e picos de viagem onde me apercebi do quão incrível e diferente é estar nesta África…. Ainda há bem pouco tempo estive em Moçambique, mas a surpresa da realidade que nos envolve é quase como se fosse a 1ª vez …. apesar de ser bem diferente de Moçambique há muita coisa em comum nesta África…. negra, pobre, cheia de cores e cheia de vida….
Cheguei à fronteira… confusão, aquela tensão policial, mas representado pela bandeira dos Médicos Sem Fronteiras, que tornou esta passagem bastante rápida e simples…. é reconfortante ver o respeito unânime que todos têm por esta Organização e pelo trabalho por ela desenvolvido…. como vos disse no outro email…. é com muito orgulho que represento esta bandeira dos MSF!
Passagem para o lado do Congo!!! Uuuuuuuu…… muito diferente… há uma tensão no ar, muitos gajos de mota com ar de trabalharem para um “lord of the war” qualquer … aparentemente é uma cidade muito perigosa com as ruas num estado inacreditável, com um vulcão bem perto, bem activo e tudo feito de pedras vulcânicas, onde há também inúmeras ONG representadas e onde a MSF-Bélgica tem uma casa que serve como base para as muitas missões que tem nesta zona leste do Congo…. esta zona será provavelmente a zona de África que teve/tem mais guerras/guerrilhas nos últimos tempos e que já teve várias guerras, às quais chamaram Guerras Mundiais Africanas por envolverem vários exércitos de vários países na pior das quais morreram mais de 5 milhões de pessoas, a mais mortífera desde a Segunda Guerra Mundial…
A casa dos MSF em Goma é bastante “sweet” em cima do lago Kivu e de onde se vê também o tal vulcão…. aí estive umas horas com outras pessoas que estavam a chegar de algum sítio ou de partida para algum sítio (como eu) que estava então de partida para o meu destino final e actual… Masisi! Fomos num Jeep “à séria”…. um daqueles verdadeiros todo-o-terreno … e disseram-me que a estrada estava bastante boa, querendo dizer que estava bastante melhor do que por vezes está…. Eu já vi algumas estradas em África e NUNCA tinha vista nada assim…. uma estrada muito hardcore de terra, cheia de pó, por isso é que diziam que já esteve muito pior, porque quando chove o percurso, em que eu demorei pouco mais de três horas, pode durar 12 horas ou até ser mesmo impossível de ser feito por ter buracos/desabamentos de terras onde nenhum carro passa e, nessas alturas, tem de se fazer o Car Kiss onde vem um carro de cada um dos pontos e as pessoas têm de sair de um, ir a pé com as malas e passar para o outro depois do tal ponto intransponível por veículos….
Mais uma vez numa paisagem muito montanhosa e bastante bonita fizemos 87 km sempre a subir pela beira dos montes…. o condutor, de 10 em 10 minutos, comunicava por rádio para os diversos pontos de controlo dizendo que estávamos em passagem para que não haja dúvidas que estamos num carro dos MSF que não oferece ameaça para ninguém! Foi uma viagem muito desconfortável e ficámos cheios de pó dentro do carro… mas que, comparativamente com alguns nativos que faziam a viagem de mota e de pretos passavam a cor-de-terra, estávamos num grande conforto… e assim começámos a avistar Masisi , uma cidade toda ela numa colina, num sítio que parece os Alpes Africanos, montes e mais montanhas mas numa paisagem e natureza africana…. é muito, muito bonito … fica a cerca de 1700 metros de altitude, mas o topo da colina onde a cidade/vila se encontra terá uns 2000 metros… mas é Lindo! Incomparável com o que quer que seja que eu já vi até hoje…. Há vários campos de refugiados/deslocados à volta da cidade e muitas cabanas por todo o lado …
Aqui os MSF têm um escritório e a casa onde vivemos. Difícil de descrever por ser um misto de o mais “roots” possível imaginário, mas com algum conforto dada a situação onde estamos inseridos…Vivemos aqui cerca de 10 pessoas expatriadas de vários países e parece-me ser tudo boa gente…. alguns que já andaram por várias partes deste mundo o que faz de mim um bebé que está a viver estas coisas pela primeira vez…. O chefe (field coordinator) é um belga com muita experiência e muito, muito respeitado por todas as partes …. o que é que são as partes e o porquê deste homem ser tão respeitado, provavelmente só vos explicarei quando voltar…
O hospital é a 300 metros da nossa casa e basicamente será entre estes dois sítios que passarei os próximos três meses e meio…. durante o dia podemos andar pela vila, mas que não tem nada, a não ser cabanas e congoleses…. à noite não podemos sair de casa a não ser que seja para ir ao hospital, se formos chamados… O hospital é mais uma vez inexplicável…. é África profunda! E os desafios são constantes e intermináveis… Já vi coisas impensáveis e já tive de fazer o que nunca fiz e em condições 1000 vezes piores do que as que eram normais para mim…. mas o nosso pensamento acaba sempre na conclusão que não podemos salvar o mundo de uma vez só e que mais ninguém tem um centésimo dos conhecimentos na minha área e como tal o meu melhor já não é nada mau….
Há tanto para dizer que torna-se difícil sequer estabelecer as prioridades para o que é o mais importante para vos transmitir….
Tenho uma espécie de horário, em que há uma rotação para estar de chamada durante as noites…. mas os “enfermeiros” de Anestesia que já fazem as coisas mais simples ou frequentes sozinhos têm a minha ordem de me chamar a qualquer momento se for algo mais grave…. por isso estou basicamente 24 horas de chamada todos os dias se for preciso, o que me asfixia um pouco….
Estou a aprender francês quando tenho tempo, com o meu já amigo cirurgião russo, com um professor congolês e levo sempre comigo um livrito para aprender francês visto ser essencial que rapidamente consiga exprimir-me mais e mais…. visto que, como já imaginava, o meu principal objectivo, mais do que o meu trabalho como médico, é tentar ensinar os tais enfermeiros que fazem anestesia e conseguem fazer algumas coisas bem feitas, mas de uma forma muito mecanizada e sem conhecimentos quase nenhuns sobre a forma como praticam esta ciência tão importante e interessante que é a Anestesia! Vejo no meu amigo russo ainda mais desafios visto que para ele é ainda mais difícil aprender francês e porque cirurgicamente está a fazer o que sabe e o que não sabe… e confortamo-nos um ao outro com as gigantes dificuldades com que nos deparamos todos os dias, profissional e pessoalmente…
Há 200 a 300 partos por mês no hospital (fora as que ficam em casa)…. é inacreditável… o que torna o número de cesarianas bastante elevado, ocupando bastante a vida do bloco operatório… muitas infecções graves e também muitos feridos com armas de fogo.
É um misto de alegria e dor escrever-vos, assim como ler as vossas respostas… é bom estar a ver as vossas caras enquanto escrevo este curto resumo de tanta vivência que tive nos últimos dias…. mas também me dói muito pensar naquele que vocês sabem ser o meu mundo…. e por isso comecei por vos dizer que escrevo-vos mais por achar que devo do que propriamente ser aquilo que me apetece fazer… é difícil retratar a mistura de emoções que vivo neste momento, mas há também a salvaguarda que estou ainda num período de habituação e, com o tempo, vamo-nos adaptando à realidade onde estamos…. e por isso vos digo muito sinceramente que para mim é importante que saibam que estou bem…. mas que dificilmente vos escreverei mais vezes….
Para animar um bocado! MUZUNGU!!! Quer dizer homem branco em Swahili…. e nos 300 metros que faço até ao hospital…. há milhares de crianças que fazem questão de TODAS e TODAS as minhas passagens fazer saber que sou MUZUNGU! Mas é incrível ver a vida e os sorrisos de todas as crianças… e todas elas gostam de dizer olá…. é uma vida, uma energia que jamais se sente no nosso mundo!
Muito mais há para dizer, mas acho que até já fui longe demais… muitos de vocês mereciam uma palavra pessoal, mas mais difícil ainda se torna e como se aperceberam não tenho assim muito tempo livre….
Ahhh…. não me posso esquecer de dizer que ando de rádio! Comunicamos entre nós via rádio que dá uma onda do caraças !! Roger !! Copy !! Over !! e coisas assim ….
Para terminar…. a internet é mega lenta e nem sempre funciona, assim como o meu telemóvel congolês; aqui é mais uma hora mas vivemos muito ao sabor da luz do sol; por isso acordamos cedo e deitamo-nos cedo…. mas vou lendo os emails por vezes ….
Estou bem! Perdido no espaço e no tempo….. mas estou bem!
Um forte, forte abraço bem apertado e muitos beijinhos.