12. Os Olhos Mais Doces

Já foi há mais de um ano, mas ainda estou feliz por escrever sobre aquilo que vi, que vivi e que senti… Porque é que escrevo? Penso que a maior razão é ajudar quem precisa… Também é verdade que escrevo porque me faz sentir bem, e me ajuda a aliviar alguma da pressão que, por vezes, parece que me vai comer por dentro… Pressão causada pelo facto de que a vida é mesmo muito dura para alguns, e nós simplesmente não queremos saber! O mundo nunca será perfeito para todos, e todos sabemos isso, mas quando alguns estão preocupados apenas em comprar um novo BMW e outros que todos os dias lutam pela vida, é demasiado… A dor física de levar um tiro, o trauma psicológico de ser violado ou ver as suas crianças a morrer à fome… E tudo isto porque não sabemos ou não nos importamos ou uma mistura de ambos… Até que ponto é que somos egoístas? A minha intenção não é dar uma lição de humanidade a ninguém… A minha intenção é partilhar os meus pensamentos e contar-vos histórias de pessoas cujas vidas nos deveriam fazer pensar sobre o que é realmente importante… e para nos motivarmos a cuidar do Ser Humano, porque somos todos iguais e todos precisamos uns dos outros…

Esta é uma história poderosa, que estou prestes a contar-vos… E é apenas um de muitos exemplos das coisas horríveis que acontecem nesta guerra terrível! Sim, há uma guerra no Congo! Sabiam disso? Talvez não. Já são tantos anos de guerra que já não aparece nas notícias, se é que alguma vez apareceu… De qualquer forma, há uma guerra no Congo… e se cada pessoa que lê o meu blogue ficar ao menos a saber que a guerra do Congo é a pior dos nossos tempos, e que ninguém quer saber, já daria os meus objectivos como conseguidos… Não me parece que esteja a pedir muito… Um passo de cada vez…

Agora a história…

Apenas mais um dia de trabalho… Eu sou chamado pelo rádio com a informação de que estavam a chegar feridos… Um homem, uma mulher e um bebé… todos feridos por bala de Kalashnikov… Uma família humilde, que foi atacada pelo exército, o exército congolês, aqueles que era suposto estarem a protegê-los, entraram na sua cabana para os roubar, e sabe-se lá porquê, começaram a disparar…. bang, bang, bang, bang, bang, bang…. É difícil imaginar, até para mim, depois de ver esta família de feridos… como é possível que estes homens sejam capazes de fazer tais coisas… É isto que a guerra faz às pessoas, da mesma forma que vimos aqueles soldados americanos (com muito mais treino e educação do que os congoleses) a matar inocentes, incluindo crianças, de um helicóptero no Iraque (o famoso vídeo que a Wikileaks publicou para todos verem)…. Acho que matar, se torna normal para eles…

Sabem qual foi a primeira coisa que me veio à cabeça? A mesma que em muitas outras circunstâncias semelhantes… Que eles foram os sortudos! Sortudos que a bala não matou… muitas vezes apenas por um centímetro… Eles não eram apenas sortudos… eles eram Os sortudos… porque muitos outros levam tiros todos os dias e não são a história de ninguém… são apenas mortos… E todos os que tratei têm histórias inimagináveis porque são uma pequena minoria, os que levam um tiro e não morrem!

Então esta família de “sortudos” foi roubada e agredida a tiro… O bebé, que teria uns 2 anos, teve muita “sorte”… levou um tiro no tórax… mas era apenas uma ferida de entrada e saída nos tecidos superficiais… Às vezes, pode-se morrer disso, se não for limpa e desbridada cirurgicamente a ferida vai infectar e depois as coisas podem correr muito mal… mas felizmente não foi o caso. Levamo-lo ao bloco operatório, abrimos a ferida, desbridando todos os pedaços de tecidos (pele, músculo, gordura, etc) em que a bala tocou, e, para isso, a ferida fica muito mais aberta… talvez 10 vezes maior que os buracos de bala originais… Limpamos, limpamos e limpamos e uns dias mais tarde fazemo-lo e removemos todos os sinais de infecção… e se tudo correr bem, depois de algumas viagens ao bloco, fechamos a ferida como gesto final para a cura… Sim, até uma ferida superficial exige bastante para que se salve uma vida… e no caso de um bebé de 2 anos tudo fica mais complicado neste hospital do fim do mundo, onde as condições de higiene estão longe de ser as ideais…

Depois o pai “sortudo”, que também teve muita “sorte”, não era uma ferida superficial, mas a bala entrou e saiu da coxa sem tocar no osso… Porque quando toca no osso, é fractura grave pela certa e tudo se torna infinitamente mais complicado… se se tiver a sorte de não se perder de imediato a perna ou o braço… Mas não foi o caso, este homem “sortudo”, não tinha fractura… mas uma ferida de entrada e saída de bala, depois de operada, torna-se num espectáculo de anatomia a céu aberto das estruturas da coxa…

(seis meses depois, e no meio de uma experiência paquistanesa ainda por contar, continuo esta história… Está tudo na minha cabeça, pelo que assumo que esta continuação possa ser diferente do que seria se tivesse sido escrita de seguida.)

Então a coxa deste pai “sortudo”, custou-lhe muitas horas no bloco operatório, limpeza e desbridamento a cada dois dias, mas pode dizer-se que a sua vida nunca esteve em perigo…

O mesmo não poderia dizer da mãe “sortuda”… Nem se percebe bem o trajecto da bala, mas tem três buracos no seu corpo feitos apenas por uma bala… Entrou na parte superior do seu seio, saiu pela parte inferior do seio e entrou na cavidade abdominal… sem porta de saída… Estes casos facilmente podem pôr a vida em perigo… um desafio enorme para o cirurgião… e também um grande desafio para mim, como Anestesista nestas condições… O abdómen tem de ser aberto para que se saiba os danos que a bala fez e finalmente tentar encontrá-la… Esta mulher “sortuda” teve de facto muita “sorte” porque a bala não causou nenhuma lesão de órgão ou vaso importante, e estava escondida atrás do colón, num sítio difícil de encontrar mas sem causar nenhum dano irreparável…

Até hoje tenho esta bala ferrugenta comigo… Muitas vezes olho para ela e perco-me nos meus pensamentos, lembrando-me de onde a bala veio… uma pequena história numa guerra gigante… nas lindas montanhas do Congo, onde vida é para muitos sinónimo de GUERRA..

Ali estávamos nos dias seguintes no serviço de Cirurgia, com um bebé a chorar, demasiado pequenino para perceber o que aconteceu à sua família… e a seu lado o pai que, além do facto da sua coxa e nádega estarem destruídas, a recuperação estava a correr bastante bem, e o seu maior problema era estar a ver a sua mulher 24 horas por dia a lutar pela vida durante uns dias… até passar para o lado dos fora de perigo na minha cabeça… Ela levantou-me uma série de desafios médicos que fui tentando adivinhar e resolver o melhor que sabia com as condições limitadas que tínhamos… Esta família “sortuda” como um todo deu-me muitas dores de cabeça, horas de trabalho e preocupações para lá das questões médicas… Mas na minha cabeça, a pedra basilar desta história será sempre Os Olhos Mais Doces que eu já vi na minha vida…

Como sempre, levei algum tempo a perceber quem era quem naquele serviço de Cirurgia sempre cheio de doentes e familiares… Com os dias a passar, esta menina de 10 anos começava, cada vez mais, a chamar-me a atenção… Como irmã, com a mãe em estado crítico, e o pai que estava imobilizado, assumiu todas as responsabilidades de tomar conta do irmãozinho mais novo que levou um tiro no tórax… O único membro da família que não levou um tiro, passou tantas horas no hospital como os seus familiares, e vivendo este drama familiar de uma forma muito dura… principalmente para uma menina de 10 anos…

Como habitualmente, a comunicação não era possível pela barreira linguística… então tudo o que lia era o que os seus olhos me diziam… Era alta e magra, muito independente e madura para a idade… Nunca a vi chorar, apesar de que a vida não lhe sorria de forma alguma… Era bastante tímida e sentia que ela me observava à distância… Sempre carregando o seu irmãozinho às costas, como qualquer mulher daquelas bandas… Mas os seus olhos… eu perdia-me nos seus olhos… As fotografias nunca serão fiéis à beleza… à pureza… à inocência … dos Olhos Mais Doces que eu já vi… Acho que nunca lhe perguntei o nome, mas nunca a esquecerei… e a forma como me olhava quando me entregava o seu irmãozinho em mãos, quando este estava prestes a ser operado outra vez… parecia muito mais madura do que a maioria dos adultos, confiando-me a responsabilidade do seu irmão, de quem ela tomava conta todos os minutos do dia… E depois da cirurgia, quando eu lhe devolvia o irmão em mãos, ela olhava-me como se me estivesse a dizer… “Eu sou demasiado criança para toda esta dor, mas eu sou forte… eu sou capaz!”… Parecia mais fácil comunicar com ela apenas olhando-a nos olhos, do que com muitos outros através de palavras…

É incrível o quão madura uma criança pode ser… não deveria ser assim… mas a vida é f#$%$& para tanta gente… e quanto mais olho à minha volta, mais eu vejo a falta de valores da nossa sociedade… e a facilidade com que aceitamos a perda de milhões de vidas… seres humanos, como nós… causada pela ambição de alguns…

Há uma parte de mim que começa a odiar este mundo… onde as palavras de nada valem, os valores de nada valem, as vidas de nada valem… É o egoísmo, a ambição, o dinheiro e o poder… que, independentemente dos crimes que estejam a ser cometidos e do sangue que esteja a ser derramado… controlam o nosso mundo!

E somos todos culpados por isso! Porque nada dizemos, nada fazemos… somos culpados!

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