(continuando) …
Para acabar esta história, vou falar-vos sobre aquele que realmente roubou o meu coração, que me fez sorrir mais vezes e que, sem dúvida, é de quem tenho mais saudades, mais de um ano depois de ter saído do Congo.
Dorika, meu querido Dorika.
Eu acho que ele tinha 5 anos e fazia parte do Clube que “vivia” no serviço de Cirurgia… Ali estava porque o seu pai era um daqueles doentes de longa duração… Umas semanas após ter chegado a Masisi, o meu chefe pediu para falar comigo em privado… para explicar alguns factos importantes sobre um doente que iria chegar, que era “inimigo” do exército congolês… Chamava-se Sikito (o pai do Dorika) e era ruandês, um dos soldados do FDLR…
Se tentasse explicar a complexidade da guerra do Congo, perder-me-ia em páginas escritas e certamente ficariam ainda mais confusos… Ainda assim, relato alguns factos interessantes, sem tentar ter uma abordagem política na minha escrita… Sei que sou apenas um médico cujo trabalho é tratar e salvar vidas… mas tento sempre absorver a realidade que me rodeia… A história desta guerra no Congo começa em 1994 no Ruanda, quando a maioria dos ruandeses, que antes tinham sido designados de Hutus pelos belgas, 90% da população do Ruanda, decide matar os restantes 10% que têm sempre governado o país, os Tutsi. Durante cerca de três meses, os Hutus mataram a torto e a direito todos os Tutsis que conseguiram… o genocídio do Ruanda… com pouco mais do que machetes, mataram 1 milhão de um total de 7 milhões de ruandeses (eu sei! É mais do que 10%… e nem todos os Tutsis morreram… é complicado de explicar). Esta rebelião Hutu foi liderada por uma força revolucionária chamada Interahamwe, que são os principais culpados do genocídio… Depois de chacinarem 1 milhão, com a ajuda (muito tardia) da comunidade internacional, o genocídio chegou ao fim e os culpados foram perseguidos… e então os Interahamwe fugiram… Para onde? Congo! As bonitas montanhas do Congo… Um país já aos destroços, é o local ideal para fugirem e tentarem montar a sua resistência ao poder Tutsi… Por isso, os Interahamwe ainda estão no Leste do Congo (na zona onde eu estava), bem armados, bem treinados e bem motivados para um dia voltarem ao seu país… E por isso se intitulam FDLR, Forces Démocratiques de Libération du Rwanda… o que me leva de volta ao Sikito… e à conversa em privado com o meu chefe.
Eu e o cirurgião fomos informados que estávamos prestes a receber um soldado do FDLR, ferido por bala… Não é fácil gerir estas situações da forma que os Médicos Sem Fronteiras o fazem… ou tratamos toda a gente ou não tratamos ninguém, ou ambos os lados do conflito ou nenhum… Os MSF defendem as vidas humanas… sem olhar à cor, às crenças religiosas, ou às visões políticas… a nossa dedicação será sempre a mesma… e é muito importante não só mantermos essa linha de actuação, mas também que a população saiba que é essa a nossa linha de actuação… Querendo dizer que a nossa missão não é interferir, a nossa missão é salvar vidas… e se um dos lados do conflito quer ser tratado pelos MSF, é bom que saibam que o outro lado será igualmente tratado no mesmo hospital, todos como iguais… Mas isto é muito difícil de se conquistar, porque nunca conseguimos agradar a toda a gente e haverá sempre alguém que dirá que estamos a ajudar o inimigo! O exército congolês tentava impedir que os MSF tratassem os rebeldes, mas o meu chefe era peremptório sobre esse assunto: feridos e doentes serão sempre vistos de uma forma neutra no hospital… Na verdade fazíamos esforços extra para chegar às zonas controladas pelos rebeldes, para que ficasse claro que tentávamos chegar a toda a população…
Mas no hospital, Sikito e outros evitavam falar demasiado, para não dar nas vistas, porque havia precedentes… o exército podia prendê-lo no hospital, apesar de que é proibido pela Convenção de Genebra (quem quer saber dessas convenções no meio do nada?), ou então prendiam-no no minuto em que saísse do hospital… Eles falavam uma língua diferente, no caso dos FDLR era o Kinyarwanda… língua falada no Ruanda, mas não no Congo.
Assim, podem perceber a pressão emocional que vivíamos no hospital… Tanto quanto eu saiba, apenas eu, o cirurgião e o meu chefe sabíamos que ele era FDLR, mais ninguém sabia… Apesar de que poderiam suspeitar.
O Sikito tinha uma fractura no fémur causada por uma bala de Kalashnikov durante uma troca de tiros, e pior do que a falha de 10 cm de osso era a infecção do mesmo osso. Ele chegou-nos dias ou semanas após ser ferido e por isso a nossa missão de o tratar torna-se muito, muito difícil…. se é que é possível… Sikito estava sozinho no hospital, sempre deitado, sem falar com ninguém e levamo-lo muitas vezes ao bloco operatório para lhe limpar a sua horrível osteomielite… Chegou francamente desidratado e fraco… quase nem falava… Apesar da infecção não ter grandes melhorias, o seu estado geral melhorou imenso… Era magérrimo, mas forte… olhos grandes expressivos, tímido mas de sorriso charmoso… dizia algumas palavras básicas em inglês (no Ruanda, Francês e Inglês são ambas línguas oficiais)… E quando lhe perguntávamos “How are you?” presenteava-nos com um sorriso convincente ao responder “I am fine!”.
Após vários dias, a sua mulher e filho chegaram. O Sikito ficou muito contente por os ter a seu lado… talvez estivesse a arriscar a sua vida e da sua família… porque eram todos ruandeses e o Dorika, provavelmente nascido no Congo, não falava Swahili, apenas Kinyarwanda…
Então o Dorika tornou-se parte da minha vida… Imediatamente conquistou a minha atenção. Era muito querido e de fácil interacção… sempre a sorrir como nenhum outro e super activo… a correr e a brincar entre e debaixo das camas… Comecei a adorá-lo e ele a mim… Parecia que estava à minha espera a cada manhã, e corria para me abraçar mal me via… adorava as minhas palhaçadas… atirava-o ao ar e ele ficava louco de alegria, e só pedia cada vez mais alto… Era amoroso com as outras crianças e embora não falasse a mesma língua via-se que fazia amigos com muita facilidade…
Sikito, a sua mulher e o Dorika ficaram no hospital até ao dia em que eu me vim embora, e a infecção parecia não querer ir a lado nenhum… mas mantínhamos a esperança e a dedicação para o tratar sem o amputar… Durante cerca de três meses brinquei todos os dias com o Dorika, ele delirava com os meus balões e por vezes até dava uns passeios à volta do hospital… Eles são tãoooo fáceis… aproximam-se sem hesitar e sem medos ou dúvidas brincam com toda a gente… Uma das memórias mais ternurentas que tenho dele era a sua forma de falar… Como as crianças aprendem rápido o Dorika já dizia algumas palavras em Swahili… e eu as poucas que sabia dizer tentava usar o mais possível… Em Swahili usam muito a expressão “Pólé Pólé” que quer dizer algo como “devagarinho”, e que, de alguma forma, representa bastante o estilo Africano…
Por vezes, dava então umas voltinhas no hospital com a Maria ao meu colo (que não conseguia andar com o gesso) e de mão dada com o Dorika… mas o Dorika queria ir sempre mais e mais rápido… e eu estava sempre e repetir “Pólé Pólé Dorika” … e ele repetia da forma mais querida que se possa imaginar com a sua dicção abebezada sem dizer os Ls…. “Póié Póié”… E eu repetia só para o ouvir de novo! E quando lhe perguntava “Habari gani?” (Como estás?) A versão do Dorika de “Muzuri” (bem) era deliciosa… “Muzuii”… Pequenos e parvos detalhes que explicam o quanto eu adorava esta criança…
Mas um dia o meu mundo colapsou! Bem, estou a exagerar um bocado… Mas quando vi o Dorika de vestido comprido verde… fiquei em choque e a pensar para comigo… Eu percebo que nesta África eles sejam extremamente pobres, quase sem roupas para as crianças ou para eles mesmos… mas vestir um rapazinho com vestido comprido tipo princesa, é demasiado! Na minha perspectiva de “macho latino” considerava que vestir um rapazinho assim, poderia traumatizá-lo psicologicamente para o resto da sua vida!
E no meio da minha raiva, comecei a pensar: “ Será que o meu rapazinho corajoso e selvagem é uma menina?”. As crianças têm todas o cabelo rapado, muitas vezes até as mulheres adultas, por razões de higiene, e por isso às vezes é difícil distinguir… Ele comportava-se como um rapaz, dizia-me o meu instinto… mas não podia estar mais enganado! Ele era uma ela! Perguntei aos enfermeiros e eles confirmaram. O “meu” rapazinho era uma menina! Tanto tempo a brincar com ela e não me apercebi… Acho que fiquei algo desiludido, por razões bastante estúpidas, claro…
Claro também que a minha relação com ela não mudou nem um bocadinho… na verdade fortalecia-se a cada dia… e a minha admiração e adoração por esta corajosa menina não podiam ser maiores… Chegou o dia em que decidi dar uns porta-chaves a todas as crianças que a minha irmã me tinha dado, que diziam Portugal… E como tudo o que lhes damos, fá-los extremamente felizes, mesmo que um porta-chaves seja perfeitamente inútil para eles… Eles estavam felizes e eu cada vez mais triste porque a minha partida estava a aproximar-se… Sempre imaginei que iria ao hospital mesmo antes de partir para me despedir de toda a gente de uma forma calorosa… Mas quando chegou o dia, simplesmente não consegui… Talvez fosse por isso que ali estava, pelas sensações fortes, mas algumas ultrapassavam-me por completo, demasiado intenso… E estas crianças sobre as quais escrevi, principalmente a Dorika, foram a principal razão pela qual não consegui dizer adeus a ninguém no hospital no dia da partida… Foram o centro da minha vida durante quatro meses… imaginar vê-los pela última vez cortava a respiração! Não faço ideia do que pensavam eles sobre estes brancos estranhos que habitavam no seu país… mas não queria que me vissem a chorar, principalmente quando nem sequer podemos dizer alguma coisa para nos explicar… Foi extremamente difícil chegar ao Congo e adaptar-me a viver numa zona de guerra… Mas deixar tudo para trás foi muito mais duro e doloroso!
Estas crianças… O MEU CLUBE… são a razão pela qual eu tenho de escrever… e descrever sentimentos íntimos sobre uma realidade difícil de enfrentar, mas que não pode ser esquecida, porque nós, enquanto Seres Humanos… somos todos iguais!
E agora, no meu conforto Europeu, pergunto a mim mesmo onde estará esta menina maravilhosa que roubou o meu coração, e cuja história de vida nos conta a complexidade da pior guerra em que nós vivemos, desde a Segunda Guerra Mundial?