Quando eu era pequenino e a minha mãe me via a brincar com um grupo (três seria suficiente)… ela costumava dizer algo do género: “que clube tão fantástico!” … e era exactamente isso que eu tinha no hospital de Masisi, um clube fantástico… Nem sempre era o mesmo, alguns entravam, outros saíam, ao sabor das admissões e altas do hospital…
Quando não falamos a língua não é fácil criar laços, mas com as crianças é bem diferente… com coisas muito simples conquistamos sorrisos, fortalecemos a confiança e fazemos amigos… Como todas as crianças no mundo, estas tinham uma capacidade de aquecer todas as almas com os seus golpes de charme… Penso que, quando estamos longe de casa, quase sem contacto do resto do mundo, precisamos que alguém nos aqueça a alma para estarmos em paz com as nossas emoções, para encontrarmos razões para sorrir, para ajudar a esquecer que estamos no meio de uma guerra e todas as pessoas de quem gostamos estão infinitamente longe…
E pouco a pouco, com truques, graças, sorrisos e pequenos presentes… dei por mim com uma ligação muito forte com algumas das crianças do hospital… e vou contar-vos algumas histórias.
Mais do que nunca vivia para trabalhar, e durante os quatro meses que lá estive só não fui ao hospital três ou quatro dias… Em todos os outros: trabalho, trabalho, trabalho… muitas vezes sem pausas e sem comida até à noitinha… e claro, quando vivemos para trabalhar, as relações que estabelecemos no hospital são muito fortes, até que há um momento que parece que são tudo o que temos na vida…
A nossa rotina (minha e do cirurgião) era quase sempre a mesma, se não tivéssemos nada de muito urgente, tínhamos uma reunião matinal com o staff local… os congoleses adoram reuniões… era uma enorme perda de tempo… tentávamos lutar contra o status quo… mas não é fácil, eles adoram discutir sobre tudo e sobre nada… Por vezes fazia-se uma reunião especial, para coisas tão importantes como decidir quem ficaria com a chave de um determinado armário… e assim derretíamos uma hora… Mais para o final, com muita luta, conseguimos exterminar algumas dessas reuniões para que tivéssemos mais tempo para tratar dos doentes… Mas estes são os obstáculos que encontramos ao trabalhar nestes locais… não é só a guerra ou a falta de meios… é toda uma mentalidade que é muito diferente de tudo o que conhecemos…
E depois da reunião matinal, fazíamos a visita ao serviço de Cirurgia… Era bastante interessante e muitas vezes até divertido… as conversas com os doentes, perdidas em traduções entre Swahili, Francês e Inglês e o bom humor dos congoleses alegravam as manhãs… Fazíamos o ponto de situação de todos os doentes, um por um, discutindo o tratamento e o plano para as cirurgias de cada dia. Eu, como anestesista, essencialmente interferia nos doentes mais graves, e claro no controlo da dor, dos fluidos e dos antibióticos… e fazia a minha avaliação dos que estavam prestes a ser operados… Mas muitas outras questões, sobre as decisões cirúrgicas não me diziam respeito, embora estivesse sempre à escuta…
Era nestas primeiras horas da manhã que eu brincava com os meus amigos pequeninos… Às vezes um ou mais davam-me a mão e acompanhavam o grupo que fazia a visita como se fossem parte dele… Eram os momentos mais felizes do meu dia… Simplesmente adorava atirá-los ao ar, fazer balões com as luvas de plástico, corridas, desenhos (tenho a certeza que muitos nunca tinham visto um lápis ou uma caneta)… e com algumas palavras e linguagem gestual divertíamo-nos imenso… Era uma sensação maravilhosa quando alguns corriam na minha direcção mal me viam de manhã…provavelmente queriam mais um balão, que eram um grande sucesso… mas derretiam-me o coração por completo… e sentia-me especial aos seus olhos, crianças estas que directa ou indirectamente já sofreram tanto com esta guerra terrível… Da maioria deles nunca cheguei a saber o nome, ainda que uma das poucas frases que sabia dizer era “Jina lako nani?”, mas os seus nomes eram para mim difíceis de compreender e repetir… Mas com ou sem nomes na minha memória vou lembrar-me deles para sempre…
As duas irmãs queridas que foram vítimas directas do conflito já foram uma forte história por si só… e por muitas razões faziam parte do meu grupo favorito… Ainda me lembro como se fosse hoje, quando me chegaram às mãos com as suas feridas por balas de Kalashnikov, as suas roupas ensanguentadas, os seus gritos de desespero… e claro a sua evolução… quando vi os seus sorrisos pela primeira vez… conquistar a sua confiança, levá-las vezes sem conta ao bloco operatório, contra a sua vontade sem dúvida, mas com a sensação de que sabiam quem eu era e que confiavam em mim de alguma forma… E claro que isso fazia uma enorme diferença de cada vez que tinha que lhes injectar a Ketamina ou colocar um cateter numa veia… A cama da Tuliza era muitas vezes o ponto de encontro da criançada… porque ela não podia andar por causa da bala que lhe destruiu o pé.
Neste Congo, cada vez que chamava alguém pelo nome, a resposta imediata era “present” em francês… E comecei a perceber que em swahili, faziam o mesmo e que se dizia algo como “abê”…. E então, de cada vez que passava pelo quarto da Tuliza, eu chamava-a: “Tuliiiizzaa!” E ela respondia-me de uma forma muito querida com a sua voz abebézada: “Abê!” … e eu simplesmente adorava…
A outra menina também gordinha… que era algo parecida com a Tuliza também fazia parte do grupo… mas não faço ideia porquê. Estaria doente? Não me parecia… Então deveria ser familiar de algum doente de outro serviço do hospital… estava muitas vezes por ali, mas não sei de onde vinha… encaixava bem no Clube… sempre a sorrir e a pedir-me alguma coisa…
O meu melhor amigo por uns tempos… Um rapazito de 10 anos que me marcou profundamente… Uma criança para as brincadeiras, mas bem adulto para tanta coisa… Entre nós ficaram muito mais do que sorrisos e gargalhadas… Tenho saudades dele, e a garra que ele me transmitia era uma inspiração… Uma história que já escrevi, mas por vezes sinto que teria muito mais para escrever…
Maria… tanto a dizer sobre a Maria… provavelmente a mascote mais famosa do hospital de Masisi durante muito tempo. Uma grande parte da minha vida enquanto lá estava e um ano depois, ainda muitas vezes no meu pensamento… Tinha 5 anos e quando cheguei já “vivia” no hospital há 3 meses; e, 4 meses depois quando saí, ainda lá estava… Não era vítima da guerra, era “apenas” vítima da pobreza… Tinha uma queimadura exuberante. Quando não há electricidade, tudo depende do fogo e do ferver da água… E com muita frequência, as crianças queimavam-se por tudo e por nada, vítimas da falta de segurança e da sua forma de viver… A Maria tinha queimaduras em muitas partes do corpo que cicatrizaram com sucesso, mas a parte posterior da perna era uma pesadelo… Muitos enxertos de pele foram tentados, mas a falta de higiene levou a muitas infecções desta ferida que nunca cicatrizava… Ela era triste… Olhos tristes, expressão triste… Só com muito esforço a conseguia fazer sorrir… e ela era, de longe, com quem eu passava mais tempo, e a quem eu dava mais atenção… Uma vez, encontrei um livro de pintar com lápis de cor… mas não teve o efeito que eu esperava… Tentei explicar como se pintava, mas cheguei à conclusão que os nossos mundos eram demasiado diferentes! Ela nunca tinha visto nada parecido, e penso que este tipo de actividades não chegou a estas partes do mundo… Mas no meu outro presente tive uma grande surpresa… Encontrei um poster numa revista com uma foto de elefantes… Dei-lhe o poster e colei-o na parede ao lado da sua cama… Ficou bastante contente com a sua nova “decoração” de espaço… Quando voltei no dia seguinte, o poster não estava lá… Fiquei um bocado frustrado e pensei com os meus botões, que seria normal que algo tão frágil se destruísse facilmente… mas pedi ao enfermeiro para lhe perguntar onde estavam os elefantes… E a Maria apontou para a janela dizendo que “eles fugiram para a selva”… Uns dias mais tarde, fui surpreendido com o poster na parede outra vez, e voltei a perguntar o que se passou… e ela sorrindo disse-me “os elefantes voltaram da selva porque tinham saudades minhas!”…. Insignificâncias que me deixavam encantado com esta menina… A mãe dela estava “muito” grávida, como todas as mulheres africanas… parece que estão sempre grávidas… e durante toda a estadia da Maria no hospital, ela continuava a trabalhar… aqui a vida continua sempre… Apanhava e vendia lenha e coisas do género… Então a Maria passava a maior parte do tempo sozinha, e quase sempre com gesso na perna na tentativa de cicatrizar a ferida… Coitadinha.
O irmão da Maria… O irmão da Maria estava por lá… Não sei se deu para perceber, mas quando algum membro da família está no hospital, toda a família dorme lá, ou à volta… muitas vezes vêm de vilas longínquas que podiam ser dias de distância a caminhar… Então por ali ficam, e à noite, às vezes, via três, quatro ou cinco pessoas a dormir na mesma cama… ou debaixo da cama… bastante higiénico, não é?… mas não havia forma de dar a volta a essa questão… Este pequenino tinha menos de 2 anos, e como todos os outros estava sempre sujo, especialmente o nariz, e só tinha duas ou três T-shirts extremamente podres… Sempre a correr de um lado para o outro, em passinhos pequeninos… também fazia parte dos melhores momentos do meu dia… A minha relação com ele foi trifásica… Começou por ter medo de mim, fugia de mim e gritava quando eu tentava dizer-lhe olá… passou por uma fase em que tolerava a minha presença mas ainda com imenso medo de qualquer contacto com o “Muzungu”… e acabou numa fase maravilhosa em que corria na minha direcção todo feliz, de cada vez que me via… e como reflexo saltava para o meu colo…
(esta história continua)