7. Mulher Africana

Provavelmente todos sabemos que as mulheres não são tratadas como iguais em diversas partes do mundo, provavelmente também sabemos que quanto mais subdesenvolvido for o país, mais vemos discriminação feminina… E também saberão que em todas as guerras, enquanto uns lutam por território e dinheiro, são as mulheres e as crianças que mais sofrem…

É bastante impressionante ver as diferenças de papéis na sociedade entre homens e mulheres neste ponto do planeta… Há muita coisa que eu nunca percebi na forma como vivem… mas há muitas outras que me chocaram profundamente e que saltam facilmente à vista… Todo o trabalho mais duro é feito por mulheres, todo o cultivo das terras é feito por mulheres e, claro, a lida da casa, tomar conta das crianças e por aí fora…

Esta região é muito montanhosa e são sempre as mulheres que carregam cargas pesadas às costas, para cima e para baixo da montanha… enquanto que os homens não carregam nada! São das montanhas mais inclinadas que já vi, e as cargas que levam são inimagináveis… 40, 50, 60 quilos… quem sabe. E além do que carregam, madeira, carvão, água… ainda levam uma criança ao pescoço e assim caminham horas… o seu fácies de esforço e esgar de dor são de cortar a respiração… mas assim é a sua vida… todos os dias… O meu respeito e admiração pelas mulheres africanas vai para lá do que possam imaginar, e crescia a cada dia depois de tudo o que vi….

Mas teremos alguma ideia daquilo por que elas passam? Temos alguma ideia de como os seus direitos são violados? Conseguiremos imaginar o seu sofrimento físico e psicológico nestes tempos de guerra?

Vou contar-vos uma história… a história de uma mulher… uma mulher Africana… uma mulher Congolesa… e que é apenas uma história no meio de milhões de outras…

Ela já estava no hospital quando eu cheguei a Masisi para o começo da minha missão… Tinha 39 anos e era bastante calada e tranquila, sempre com um sorriso quando nos aproximávamos dela… Olhos grandes e expressivos, bonita e confiante… Como quase todos os doentes não falava francês, e como tal não comunicávamos directamente… mas havia ali algo no seu olhar, na sua expressão, nas suas acções que me fazia acreditar que era uma mulher sensata, inteligente e segura de si mesma… E como todas as mulheres vestia os tecidos coloridos que tanta vida dão a esta áfrica negra…

Ela tinha uma grande quantidade de ligaduras a envolver o seu braço direito, e eu perguntei o que lhe tinha acontecido… Os enfermeiros locais começaram a contar-me a sua história:

“Ela levou um tiro no braço!”

“Mas porque é que disparam sobre uma mulher?”

“Ela resistiu…”

“Resistiu a quê?

“Violação!”

“E ela conseguiu escapar?”

“Conseguiu no início, mas depois eles foram atrás dela, deram-lhe um tiro no braço, apanharam-na e violaram-na na mesma…!”

“Quem?”

“O exército congolês!”

Este foi o meu primeiro dia de trabalho no Congo… demasiada realidade para um primeiro dia… Ela tinha um buraco no braço, bem grande, causado por uma bala de uma Kalashnikov, que lhe partiu o úmero… e que provavelmente lhe deixou o braço inutilizado para todo o sempre… pouco podíamos fazer com as condições limitadas que tínhamos à nossa disposição… Levámo-la ao bloco operatório diversas vezes para desbridar e limpar a ferida… e a cicatrização decorria com normalidade, mas quando se tem cerca de 10 cm de osso em falta, não há forma de consolidar esta enorme fractura… Ela estava a sofrer bastante… E era óbvio que detestava entrar no bloco operatório… Mas eu sentia confiança no seu olhar… Olhava para nós com esperança, sem fazer qualquer pergunta…

Embora eu nunca perceba onde vão eles buscar tanta esperança, quando não temos grande coisa a oferecer nestes casos…

Ela precisava de uma qualquer espécie de prótese que segurasse o peso do seu braço para que, ainda que com limitações, o pudesse utilizar… e depois de uma grande batalha burocrática conseguimos enviá-la para um programa de próteses e reabilitação em Goma (a maior cidade da região)… e eu quero acreditar que alguma coisa ia ser feita por esta mulher inocente…

Histórias como esta perdemos-lhes a conta… Durante a guerra os homens conseguem o que querem com um método simples: a Kalashnikov! A comida, o dinheiro… e as mulheres também… Os rebeldes, mas muito mais vezes o exército congolês violam as suas próprias mulheres… Os que supostamente deviam proteger a sua população são a pior ameaça… Violam, roubam a população… incendeiam aldeias… E sem quaisquer remorsos… Tens uma arma, então consegues o que queres!

No Congo, e mais especificamente nesta região onde eu estava, os Kivus, é de longe a pior região do mundo em termos de violência sexual… Alguns relatórios apontam para que 70% das mulheres desta região já tenham sido vítimas de violência sexual alguma vez na sua vida…

Os Médicos Sem Fronteiras, criaram um programa de violência sexual, oferecendo a estas mulheres prevenção contra doenças sexualmente transmissíveis, contracepção e apoio médico e psicológico… criando elos de ligação com muitas das vilas e comunidades à nossa volta, para que estas mulheres pudessem chegar ao hospital em segredo do seu verdadeiro motivo… E todos os dias muitas novas vítimas nos chegavam a este programa… Tentativas de violação, violação, violação por grupos, violadas e feridas por machetes ou por balas… e claro algumas eram violadas e mortas… crianças, adolescentes, mulheres idosas… tudo o que se possa imaginar… E, como podemos presumir, a dor que as domina caminhará com elas o resto dos seus dias… Muitas fugiam das suas aldeias com vergonha, outras escondiam-se em silêncio com o medo da rejeição… Há casos de mulheres que foram usadas durante dias por grupos de homens armados, e que quando foram libertadas puseram fim à sua vida… preferindo a morte à vergonha!

Milhares de mulheres, AGORA, encaixam em toda esta triste descrição que acabam de ler…

Porquê? Porque é uma guerra de que ninguém quer saber… Mas é bem real…

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