6. Mãe de Dez

Eu estou longe e com as emoções à flor da pele neste momento, e talvez por isso decidi escrever uma das histórias mais intensas, difíceis de partilhar, e dolorosas da minha missão no Congo.

Eu decidi escrever estas histórias para que, de alguma forma, se tornem imortais, porque não as quero esquecer e não quero que as pessoas esqueçam a dura realidade de alguns locais do nosso planeta… Eu quero que a minha voz insignificante chegue ao maior número de pessoas possível, e poder contar como a vida pode ser tão injusta para alguns, e o quão importante é saber do que se passa nesta realidade tão distante de nós…

Distante não só em termos geográficos, mas acima de tudo distante dos nossos olhos, dos nossos ouvidos e da nossa mente… Fico triste que algumas guerras sejam “famosas” e tenham tanta ajuda internacional, enquanto que outras ninguém sabe que existem, ninguém se preocupa e por causa disso milhões de inocentes continuarão a sofrer horrores achando que a palavra paz é um sonho inatingível…

Ao tomarmos conhecimento o nosso coração vai sentir, e depois certamente ajudaremos: com dinheiro, com ideias, com o nosso trabalho e também aos poucos mudando a forma de pensar daqueles que tomam as decisões importantes… E acreditem em mim, que é uma sensação transcendente ajudar aqueles que tanto precisam e apreciam a nossa ajuda…

Agora a história…

Era um domingo à tarde, e eu fui chamado ao hospital… nada de novo. Acontecia quase a cada domingo, que era suposto ser o meu dia para recarregar baterias… E aí estava uma mulher de 39 anos, que tinha acabado de dar à luz do seu décimo filho, e continuava a sangrar abundantemente após o parto… Primeiro tentaram com todos os medicamentos disponíveis parar esta hemorragia pós-parto… mas sem sucesso! Então, a decisão de parar a hemorragia cirurgicamente foi tomada… Quando eu cheguei ao bloco operatório, enquanto trocava de roupa em segundos apercebi-me imediatamente que era muito grave a situação… ouvia a frequência cardíaca através dos bips do monitor… bip, bip, bip, bip… o meu ouvido treinado dizia-me que estava mesmo muito rápida… e assim era a 180 batimentos por minuto… este é o primeiro sinal de choque hemorrágico grave… Quando entrei na sala de operações ela ainda estava consciente mas com uma pressão arterial muito baixa de 60/30 mmHg… E senti que, independentemente da causa da hemorragia, provavelmente era demasiado tarde…

Naquele momento… os pensamentos atravessam-me a cabeça como balas, das coisas que precisava mas não tinha… exames laboratoriais que no meu mundo uso quase automaticamente. Mas ali, apenas podia medir o valor da hemoglobina, no meio de tanta coisa que precisava de saber para avaliar e tratar desta doente de uma forma correcta… Mais do que nunca o que dominava as minhas reflexões era “Quem me dera poder tratar desta doente no meu hospital…” A hemoglobina já estava muito baixa… 5 mg/dl… e ainda sem ter começado a cirurgia, sabendo que ela iria sangrar muito mais… Por sorte tínhamos duas transfusões de sangue disponíveis, compatíveis com o seu… Digo por sorte, porque o nosso banco de sangue estava sempre vazio… Esta população não gostava muito de doar sangue… sentiam que estavam a dar um pedaço de si… como se fosse um braço ou uma perna… e como tal, quase nunca doavam sangue, mesmo depois de tudo bem explicado… Acho que muitas vezes eles não acreditam em nada que estas pessoas brancas estranhas lhes dizem…

Tive que intubar a doente (colocar um tubo na traqueia através da boca) para proteger a via aérea e controlar a ventilação… A cirurgia começa… Os cirurgiões abrem o abdómen para ver o que estava errado… Ela tinha uma Atonia Uterina… o que quer dizer que o útero simplesmente já não se consegue contrair… e era por isso que a hemorragia não parava… Ela acabava de ter tido o seu décimo bebé com talvez mais gravidezes pelo meio… O útero não foi feito para ser “usado” tantas vezes…

Apesar de dedicarmos uma grande parte do nosso projecto ao planeamento familiar… por muitas razões as mulheres não paravam de ter filhos… e uma das maiores razões era que os homens não aceitavam usar preservativos e nem deixavam as suas mulheres tomar a pílula… Porque para eles é um sinal de masculinidade importante o número de filhos… E isto é muito comum, “nesta África”…

Os cirurgiões tentaram controlar a hemorragia, mas era todo o útero que sangrava por todo o lado… e ainda hesitaram por uns momentos se deviam ou não fazer uma histerectomia (retirar o útero)… e eu tive que intervir… “Façam o que têm a fazer para parar a hemorragia urgentemente… O seu estado é crítico e vai ser difícil mantê-la viva… e certamente amanhã não sobreviverá a outra cirurgia!”… Eu sabia que se ela sobrevivesse ficaria uns dias num estado muito grave… e que durante esses dias nunca estaria capaz de resistir a outra intervenção cirúrgica… não aqui, não com as condições que tínhamos…

E então eles optaram por remover o útero… Entretanto, eu tinha a sua vida a fugir-me das mãos… apesar das transfusões a pressão arterial continuava baixa e a baixar… e ela precisava de muitos fluidos… E aqui está o grande dilema! A gestão de fluidos… se for a menos a pressão arterial baixa demasiado e ela morre por falta de perfusão dos órgãos nobres (cérebro, rins, coração fígado, pulmões…); se for a mais causa-lhe edema pulmonar que a vai “abafar” quando lhe retirar o tubo endotraqueal…

Eu estava a tentar dar-lhe o máximo que me parecia que ela era capaz de aguentar… e entretanto já com perfusão de adrenalina (para aumentar a pressão arterial e compensar a reacção inflamatória da cirurgia e das transfusões)… mas é muito difícil bem regular a adrenalina sem uma máquina perfusora, que não tínhamos… porque a velocidade de perfusão tem que ser exacta…

Na minha cabeça está esta doente… mãe de 10… e a ciência que tinha que usar para que conseguisse salvar a sua vida…

Os cirurgiões terminaram a cirurgia, e estavam contentes com o seu trabalho, porque o tinham feito rápido e bem… mas eu disse-lhes: “o mais difícil ainda está para vir… retirar-lhe o tubo endotraqueal”…

Eu sou um médico muito novo e com muito a aprender, mas com alguma experiência na minha área favorita da Anestesiologia… os doentes críticos… tentar salvar vidas…

Após alguns minutos, enquanto esperava que o efeito dos anestésicos desaparecesse, calmamente deixei-a começar a respirar sem o ventilador, avaliando como estavam os pulmões em termos de edema… A pressão arterial continuava muito baixa, apesar dos muitos fluidos que lhe dei e da perfusão de adrenalina que infundia a doses elevadas… O que ela precisava era de bons Cuidados Intensivos… e de ficar ligada à ventilação mecânica durante uns dias… mas nós não tínhamos nada parecido…

Sem pressa, quando me pareceu o momento certo, retirei-lhe o tubo… e ela, em segundos, desenvolveu um edema pulmonar massivo… ao ponto que o coração parou! Começo manobras de reanimação cardiopulmonar e volto a intubá-la… Fazia-lhe as compressões torácicas com todas as forças que tinha… sentia o suor do meu corpo e da minha testa a cair-me nas mãos… e assim continuei até à exaustão…

Mas perdi-a… ela morreu… nas minhas mãos…

Já vi muita gente a morrer na minha curta carreira, e muitas vezes levei-os comigo em pensamento durante muito tempo… mas nunca como esta… Pela primeira vez na minha vida fiquei com o sentimento amargo e doloroso que talvez tenha sido culpa minha, talvez tenha feito algo de errado, talvez pudesse ter feito melhor… Pela primeira vez senti-me culpado… e até hoje penso nisto com a dúvida, que talvez pudesse ter feito melhor… Gostava de ter tido alguém para partilhar decisões comigo, e concordar ou discordar das minhas acções… mas não havia ninguém com conhecimentos sobre doentes críticos que pudesse aliviar os meus pesadelos…

Ela era mãe de 10… nada se sabia sobre o pai das crianças… A filha mais velha tinha 14 anos e já estava a tomar conta do bebé recém-nascido… e agora ficou com nove irmãos para tomar conta para o resto da vida… Foi demasiado forte ver esta jovem rapariga assustada com o bebé nos braços, ao receber a notícia que a mãe tinha morrido… Ainda tenho dificuldades em segurar as lágrimas ao rever esta imagem…

Eu fui para casa, e sofri em silêncio durante horas… Os meus companheiros tentaram animar-me, dizendo que fiz tudo o que podia… Mas não era isso que eu sentia… O triste facto de que esta mulher não teria morrido nas minhas mãos se tivéssemos os meios, asfixiava-me… E a culpa! Será que fiz tudo o que podia? Será que fiz tudo certo?

Serei eu o responsável por estas 10 crianças inocentes serem agora órfãs?

A olhar fixante para o céu cheio de estrelas, passei a noite à procura das respostas para todas estas questões que rebentavam na minha cabeça… Mas este céu que cobria as lindas montanhas do Leste do Congo, cheio de vida, cheio de dor… cheio de guerra… não me deu qualquer resposta…

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