Vou contar-vos uma história sobre um miúdo que foi o meu melhor amigo por uns tempos. Além do facto de termos criado uma conexão e amizade muito fortes, houve momentos em que vi nas suas atitudes algo que me fez acreditar que ele era especial.
Durante uma boa parte da minha missão estava a ler um livro de uma história absolutamente incrível, talvez a história verídica mais fantástica que conheço… Emmanuel Jal, nasceu no Sul do Sudão, no mesmo ano que eu, 1980, mas ele nasceu no sítio errado à hora errada… Ele viu todo o seu mundo virar-se do avesso, quando a sua mãe foi morta, o seu pai andava algures perdido na guerra, e ele perdeu-se de todos os seus irmãos e irmãs… viveu em campos de refugiados, até que um dia alcançou o seu sonho de poder guerrear contra aqueles que matavam os seus, os muçulmanos do Sudão (do norte), e então quando tinha 11 anos já se passeava com uma Kalashnikov, bastante empenhado no seu treino militar… para matar! Quase morreu na guerra, de fome, em travessias do deserto, viu o seu melhor amigo morrer ao seu lado, e quase comeu um amigo morto, para sobreviver… Uma infância que nem dá para imaginar. Felizmente sobreviveu a toda esta história do além para dedicar a sua vida à paz no Sul do Sudão, expressando-se através de uma música poderosa. Actualmente, Emmanuel Jal é um rapper famoso, cuja música e história de vida mexem com todos a quem toca….
Crianças-soldado… Uma realidade que ainda acontece em muitos países africanos: Sudão, Congo, Somália, Libéria, Serra Leoa… e certamente noutros mais…
E eu sabia que neste Congo onde eu estava, havia e há muitas histórias como a do Emmanuel Jal que aconteciam a toda a minha volta… e também por isso a sua história me marcou profundamente…
Quando vemos as “nossas” crianças a jogar futebol, a divertirem-se e a aproveitar a magia da infância, ainda tão inocentes e ingénuos… e depois pensamos nas crianças “deles” que, com a mesma idade, carregam uma Kalashnikov e cuja mente é treinada para que a usem para matar… é difícil imaginar, mas é verdade…. Crianças-soldado!
O meu amigo tinha 10 anos e não era uma criança-soldado, pelo menos que eu saiba… e nem sequer era uma vítima de guerra. A razão pela qual estava no hospital era uma infecção muito feia de um dos dedos da sua mão, que precisava de várias cirurgias de limpeza… E este pequeno amigo lembrava-me imenso o Emmanuel Jal… Porquê? Tinha a mesma idade que o Emmanuel Jal, quando este aprendeu a disparar… o mesmo charme e sorriso fácil que um dia salvaram a vida ao Emmanuel, e a mesma coragem… ele era duro, valente, corajoso… tenho a certeza que era duro o suficiente para lidar com coisas que eu nem poderia imaginar… talvez ele tenha já visto e vivido muita coisa… era o que eu sentia na sua forma de estar…
A primeira vez que o vi, eu vi um brilho nos olhos e um olhar suspeito que me fazia compreender com clareza: “Eu não confio em ti! Podemos ser os melhores amigos ou os piores inimigos!”… Como quase sempre a comunicação tinha uma enorme barreira linguística. E por isso era com brincadeiras, sorrisos, caretas e gestos inventados ao minuto… que me levavam aos poucos a ser merecedor da confiança das crianças que me iam aparecendo pelo caminho, e que não só davam muita cor aos meus dias como também era crucial para a relação médico-doente…
E assim foi, depois de trocar uns sorrisos e apertos de mão, comecei a lutar com ele na brincadeira… e ele adorava… soltava gargalhadas fortes e genuínas… É difícil explicar a diferença entre estes miúdos e os nossos… mas o riso deles é tão puro, tão intenso, tão caloroso, tão cheio de vida… talvez porque como muitas outras coisas que se fazem por estas terras, nunca se sabe se será a última das suas vidas… E os risos destas crianças fazem-nos sentir que temos poderes especiais…
A primeira vez que ele entrou no bloco operatório, para que fizéssemos uma cirurgia relativamente simples… estava a preparar-me para lhe dar Ketamina intramuscular… E ia fazê-lo na parte anterior da coxa… ufffff… Foi duro! Quatro homens a segurá-lo, e eu com a seringa na mão. Ele era mais forte do que muitos homens… era duro! E pronto a lutar pelo que fosse… No final da cirurgia, fiz-lhe um bloqueio do Plexo Axilar, o que quer dizer que injectei anestésico local na sua axila, para bloquear todos os nervos do braço, para que ele não tivesse dor após a cirurgia, que pode ser muito dolorosa… Tinha alguma prática de o fazer com um neuroestimulador, coisa que não tinha em Masisi, então usei uma técnica muito antiga, que já tinha lido nos livros e visto fazer, mas que nunca tinha feito… Depois de fazer um destes bloqueios é normal ter algum bloqueio motor, ou seja, dificuldade em mexer o braço durante algumas horas…. Expliquei isso à mãe, para a tranquilizar, com um enfermeiro congolês a traduzir de Francês para Swahili…
No dia a seguir, quando cheguei ao hospital, a primeira coisa que fiz foi ver como ele estava… E sem ninguém ao lado para me ajudar na tradução, consegui perguntar se ele tinha dores, e fiquei muito feliz por saber que não tinha… e depois queria saber se ele já tinha recuperado a sua força muscular do braço em causa… Então pedi-lhe que se levantasse na sua cama e abri os meus braços para que ele me imitasse o movimento… mas ele leu aquele movimento de uma forma bem diferente, e quando eu estava de braços abertos e ele de pé na sua cama, deu um passo em frente e abraçou-me com toda a força! Foi das surpresas mais queridas que já tive… E a avaliação da força muscular dos membros superiores também já estava feita… Que bem que me soube este abraço.
Depois da cirurgia também lhe dei este chapéu de pano que ele usou alegremente todos os dias…
Mais alguns dias a brincar com ele, a fazer combates de boxe que ele adorava… e tivemos que o levar novamente ao bloco operatório… E a sua atitude foi algo que nunca vi, nem num adulto… Eu penso que a nossa empatia consolidada, fê-lo confiar cegamente em mim… Mas era uma criança e ninguém gosta de agulhas… E eu estava prestes a fazer o mesmo que da primeira vez, injectar Ketamina no músculo da coxa. Com um enfermeiro a traduzir expliquei-lhe o que ia fazer e pedi-lhe que se deitasse… Mas ele recusou… Pareceu-me estranho e insisti… mas ele recusou… Pedi ao enfermeiro para lhe dizer que sentado ia doer mais porque o músculo não está bem relaxado, mas ele disse ao enfermeiro sem hesitar: “Ele pode injectar na minha perna, mas eu quero ver!”… E assim foi, injectando a Ketamina ele olhava friamente para a seringa com uma expressão de dor, mas sem se mexer e sem qualquer som de queixume… Ele era duro… era um lutador! Dos mais corajosos que já vi!
Uns dias mais tarde fui ao hospital para fazer uma cesariana, e lembrei-me de passar no Serviço de Cirurgia para dar uma vista de olhos nos meus doentes… ver se havia algo de novo, algo de errado, ou ver se os enfermeiros precisavam de alguma coisa… Mas sem que o pudesse imaginar levei mais outra lição de vida… Era por volta das 3 a.m., e o meu pequeno amigo não estava a dormir como era suposto. Ele estava de pé ao lado da cama de outro doente… O que estaria ele a fazer?? … O outro doente era um soldado com uma ferida horrível, por bala, na perna… mas quando digo horrível, não fazem ideia o quão impressionante é olhar para esta ferida e ver todos os músculos expostos e um cheiro a infecção tenebroso, que teimava em não se curar… É impressionante até para os que viam bastantes destas… Mas o meu amigo não se mostrou impressionado ou repelido e estava a ajudar este homem a urinar… mesmo ao seu lado, segurando o urinol, mostrando o gigante coração que tinha… Forte o suficiente para ali estar, e bom ao ponto de ajudar os que não se podiam mexer…
É estranho dizer isto, mas é o que acontece quando vivemos o dia-a-dia no hospital e nos tornamos muito próximos aos nossos doentes… quando ele teve alta, eu fiquei feliz e triste ao mesmo tempo… Era meu amigo e eu fiquei com saudades por ele ter partido…
Esta é a história de um rapaz forte e bondoso que em muito me faz lembrar o Emmanuel Jal… mas o Emmanuel não teve muitas opções na vida além de matar para viver… e tudo o que peço, é que o meu amigo não seja apanhado nas teias da guerra… porque tenho a certeza que ele era duro para isso e muito mais…
A infância no Congo ou no Sudão é muito diferente… Muitas crianças não sabem quem é o Homem-Aranha ou o Avatar… mas sabem desmontar, limpar, montar e disparar uma Kalashnikov… O brinquedo mais comum em África…
Caro Gustavo,
Cruzei-me, por acaso, com este seu blogue e o que nos conta arrebatou-me.
A causa que abraçou é nobre, sem dúvida, e é bom lê-la sem a perturbação/ ofuscação da ficção.
Parabéns pelo seu trabalho e, sobretudo, pelo seu altruísmo… verdadeiro.
Tudo de bom,
Maria Rosendo