(continuando) ….
Ali estava eu dentro do carro, a viver o sonho… com uma mistura explosiva de medo e excitamento por passar fronteiras que quase ninguém passa… O Phillipe fez-me sorrir e descontrair, mas ao olhar pela janela a minha mente viajava por milhões de pensamentos…
O início da segunda parte desta viagem atravessou selva cerrada, e aí percebemos porque é que é tão difícil controlar uma guerra num terreno como este… O chão estava molhado e lamacento como sempre, e muitas vezes não conseguíamos ver nada para lá das folhas verdes enormes que se abriam no nosso caminho à medida que avançávamos… Esta floresta densa parecia ser uma barreira natural que separava a zona dos rebeldes… Durante muitos quilómetros não vi ninguém… o que é sempre um sentimento estranho e vazio… Havia muitos pequenos riachos, que por vezes se tornavam obstáculos, mesmo para estes super potentes 4×4. Saíamos do carro, e usávamos pedras e troncos para que pudéssemos seguir viagem… Fora do carro, não conseguia parar de imaginar com estranheza, que certamente muitas trocas de tiros houve a toda a volta destas árvores… Parece que sentia a guerra a acontecer em flashes da minha imaginação… apenas porque sabia das histórias que estas terras tinham para contar nos últimos 15 anos…
Após um bom pedaço da viagem, a floresta começava a abrir e a permitir-nos ver o céu, e algumas pessoas a pé cruzavam o nosso caminho vindas do nada, nesta espécie de estrada… É difícil chamar-lhe estrada porque os trilhos tinham relva bem alta, fazendo prova que nada passa por ali… E estas pessoas já são os “outros”… os “rebeldes”… Eles não são piores, nem mais culpados desta guerra sangrenta… apenas lutam por aquilo em que acreditam… e sem querer entrar em políticas, se compreenderem as suas motivações, talvez concluam como eu concluí, que talvez os “maus” sejam o exército congolês que é apoiado pelas NU e pela comunidade internacional… mas que são responsáveis por muitos mais crimes de guerra e atrocidades que os ditos “rebeldes”… E claro que a maioria das pessoas não tem nenhuma participação activa no conflito e apenas tenta viver as suas vidas, sem mais nenhum sítio para onde ir… Apenas vivem nas vilas e na área onde o “inimigo” está a viver. O que faz delas inocentemente um alvo de sofrimento.
A maioria das pessoas nestes locais perdidos da Terra, ficava imensamente contente de nos ver… As crianças acenavam-nos e gritavam de alegria e os adultos sorriam com os olhos bem abertos e a brilhar, perante a nossa presença… Mas aqui era diferente… Ficavam todos tão surpresos e espantados com a nossa presença, que congelavam sem ter tempo de transparecer o calor das boas-vindas… Até as crianças que são sempre tão honestas nas suas atitudes, tal era o estado de choque por nos ver, que ficavam imobilizadas a olhar-nos fixamente… como se o seu corpo não se pudesse mexer em reacção à visão inesperada destas pessoas brancas dentro de carros… aparentemente para os ajudar…
Nunca esquecerei o olhar nas caras destas pessoas… E aquilo que eu lia nos seus olhos antes de um natural “Obrigado por virem aqui!”… eu sentia os seus olhares a perguntarem-me:
“O que é que estão aqui a fazer?”
“Porque é que estão aqui?”
“Não sabem que há uma guerra por estas terras?”
Estas eram as primeiras reacções que se liam nos seus olhares… e passado algum tempo eu começava a ler esperança nos seus olhos:
“Há algumas pessoas que não se esqueceram de nós!”
“Talvez nem todos se tenham esquecido que existimos!”
Provavelmente estão a pensar que eu tirava demasiadas conclusões destes contactos visuais… Mas vocês não imaginam o quão intensa era a forma como olhavam para nós… Surpresa e Esperança! Eu não me sinto especial, mas nestes momentos eu senti-me verdadeiramente especial ao causar estas emoções fortíssimas nestas pessoas desafortunadas… cujos sentimentos são tão fortes que não precisamos de falar com elas, para ouvirmos o que nos estão a dizer….
Passámos por algumas aldeias abandonadas… Foi um dos momentos mais tristes da minha vida. Ver uma vila inteira com muitas cabanas em bom estado, mas completamente abandonadas com a relva a crescer a toda a volta…. Ficar nesta Terra de Ninguém era correr demasiados riscos, então abandonavam as suas casas por completo… e o seu esforço, o seu trabalho, a sua casa, a sua vida era deixada para trás em fuga desta guerra assustadora…
E a viagem continua… o meu motorista era um dos melhores e mais experientes e já aqui tinha vindo um par de vezes… A determinada altura pára o carro à frente de um grupo de homens com Kalashnikovs, e depois de trocar com eles algumas palavras em Swahili deu-lhes um maço de cigarros… “Doutor, este é um dos generais do APCLS (Aliance des Patriotes pour un Congo Libre et Souverain, um grupo armado que quer dar as riquezas do Congo aos Congoleses) … e nós temos que lhes dar alguma coisa! Sabe-se lá o que pode acontecer um dia!” …. Compreendi bem o que me quis dizer… Nunca sabemos se um dia vamos ficar presos no meio desta guerra, e é melhor ter alguns amigos…
Não era fácil para os MSF terem acesso a esta área. Uns dias antes ouvi o meu chefe a ter uma discussão feia ao telefone, com alguém importante do exército congolês que nos acusava de ajudar o inimigo… Mas o meu chefe afirmava firme e sem hesitar: “Ou tratamos todos ou não tratamos ninguém!”… Seja onde for que os MSF trabalhem, é imperativo ter as portas abertas aos diferentes lados do conflito, para que toda a gente perceba que não tomamos partidos… apenas nos preocupamos com as pessoas! Nunca olhando para a cor da pele, ou qualquer crença religiosa ou filiação política…
E finalmente, três horas após termos saído de Masisi (apenas para fazer cerca de 40 quilómetros), chegámos a Likueti!
Era uma pequena aldeia, mas nunca percebemos bem a verdadeira extensão destes agrupamentos de palhotas que se perdem pela selva adentro… De onde eu estava via montanhas bastante altas e inclinadas… A beleza da paisagem nunca parava de me surpreender… mas o mais incrível era a ponte! Esta aldeia ficava mesmo à beira-rio, a fazer lembrar aquelas aldeias dos índios que vemos nos filmes… e o rio era bastante largo, com uma ponte que conectava os dois lados… Esta ponte, que tinha seguramente 50 m de largura, foi construída por homens sem qualquer maquinaria envolvida, feita de cordas e tábuas de madeira, parecia que estava a viver num filme do Indiana Jones…
Parámos o carro mesmo em frente à aldeia. Ao sairmos, fomos sendo rodeados de muitas pessoas… nunca é agradável ver muitos homens com Kalashnikovs, mas sentia-me seguro, pareciam amistosos… O Phillipe começou a falar com o seu chefe, um Coronel do APCLS… e depois apresentou-me a ele. O Coronel começa por nos mostrar a primeira razão de toda esta aventura… Uma mulher que teve três gémeos há dois dias… estava bastante fraca… estavam outras três mulheres com cada um dos bebés ao colo… eram muito, muito pequeninos pareciam bem de saúde mas precisavam de alguns cuidados para que não houvesse dúvidas de que iam sobreviver! Enquanto eu estava a fazer a avaliação clínica dos recém-nascidos ouço o Phillipe a perguntar ao Coronel…
“Qual destes três é seu?”
“Nenhum, Phillipe.”… com um sorriso ingénuo.
“O quê?? Nascem três bebés na sua aldeia e nenhum deles é seu ?!?” Os que percebiam francês desmancharam-se a rir porque o Phillipe tinha um sentido de humor incomparável… Muitos outros não percebiam francês mas riram-se também por contágio… e assim o que parecia difícil tornou-se fácil… estava quebrado o gelo e toda a envolvência humana era agradável… E o Phillipe tinha estes dotes de magia, no meio deste ambiente para mim pesado, o que me dominava eram os sorrisos…
E continuei a avaliar e a tratar os quatro doentes que tinha em mãos enquanto o Phillipe procurava a segunda razão dos 40 quilómetros mais longos da minha vida…
Um homem novo que levou um tiro na parte inferior do tórax, e que, sendo um sortudo por estar vivo, a sua condição clínica merecia muita da minha atenção… Ele era FDLR (Forces Democratiques de Liberation du Rwanda), um dos grupos de Hutus responsáveis pelo genocídio do Ruanda, que fugiram para o Congo quando os Tutsi tomaram novamente conta do poder… e cuja razão de existir consiste em um dia devolver aos Hutus o controlo do seu país, visto que são 90% da população e que sempre foram oprimidos pelos Tutsi…
Não é linear compreender o genocídio do Ruanda… mas o que é certo é que agora o Ruanda é um país seguro e desenvolvido graças a uma enorme ajuda internacional que se sentiu culpada por não ter agido a tempo no genocídio, em 1994… e agora este Ruanda é uma das razões pelas quais o leste do Congo está a sofrer esta guerra horrenda há tantos anos…
No meio do nada… Antibióticos, analgésicos, hidratação endovenosa abundante… avaliar, limpar a ferida… avaliar o tórax e o abdómen… e transportá-lo para o 4×4 que servia de ambulância, onde eu também ia. E a mulher com os trigémeos iria no outro carro…
Antes de partirmos o Phillipe aproximou-se de mim e disse-me:
“O Coronel esteve a contar-me que tem hemorroides. Tens alguma coisa para lhe dar?”
“Não, não tenho nada… ele tem que mudar os seus hábitos alimentares e se não melhorar, talvez tenha que ser operado.”
“Arranja qualquer coisa para lhe dar!”
“Phillipe, não tenho nada!”
“Tens que lhe dar qualquer coisa, nem que seja apenas psicológico!”
O Phillipe não tinha conhecimentos médicos mas sabia, bem melhor do que eu, a importância do efeito placebo, depois de tantos anos em África…
Então peguei na Sulfadiazina (que é um creme para queimaduras) e fui timidamente falar com o Coronel em privado… e depois de lhe ter dado algumas explicações sobre o que não devia comer, dei-lhe o dito creme… O Coronel ficou bastante contente e disse: “Phillipe é muito gentil da vossa parte.”… e mais uma vez o Phillipe arrancou-me um sorriso (este para dentro)…
E este tipo de acções é de extrema importância para que os MSF continuem a ter acesso a estas populações onde mais ninguém chega… e que não têm NADA.
O regresso é como sair de uma prisão… nós saímos, eles ficam! … sem qualquer hipótese de fuga. É uma sensação tristíssima… Não consigo não olhar para trás, e à medida que arrancamos toda a aldeia está a olhar para nós e nos seus olhares eu ouço:
“Por favor, voltem outra vez!”
“Não se esqueçam de nós!” … e esta é a minha forma de manter a minha promessa, de que eu NUNCA me esquecerei de vocês! E tentarei que o mundo saiba o que se passa nestes locais esquecidos pela Humanidade…
Se a ida foi acidentada… o regresso foi bem pior. Durante três horas tive que ir na parte de trás do carro, para me assegurar que o homem ferido não saltava demasiado nos obstáculos mais difíceis, controlando as perfusões e ao mesmo tempo segurando-me… não foi nada agradável… talvez pela positiva é que já não tinha tempo para que a minha mente divagasse…
Logo após passar a vila de Nyabiondo… ali foi outra vez! Pela 3a vez no Congo desde que cheguei! No meio da Zona Vermelha, na pior guerra dos tempos modernos… mais uma camisola do FCPorto se passeava à beira da estrada… E eu não consegui controlar o entusiasmo, pus a cabeça de fora da janela e gritei: “ POOOOORRRTTTTOOOOOOOOOOOOO!!!” Tenho quase a certeza de que o homem não fazia ideia de onde vinha aquela camisola, mas mais uma vez me enchi de felicidade por um detalhe aparentemente tão insignificante!
Terei o direito de me sentir feliz depois de toda a miséria que acabei de ver? Sinceramente não sei. Mas o que é facto é que estas pequenas coisas me fazem sentir vivo e, claro, quando chegar a casa vou contar este detalhe com muito orgulho aos meus amigos que partilham comigo a paixão pelo FCPorto.
Os trigémeos foram a alegria para toda a gente no hospital de Masisi… Nestas bandas, não é frequente que os três gémeos sobrevivam, mas estes alteraram as estatísticas para melhor.
O ruandês Hutu foi para casa levando ainda dentro de si a bala que não sabemos onde se encontra (não tínhamos sequer raio-x), mas que em nada o impedia de ter boa saúde, e por isso seria errado ir à procura de uma bala inocente… Ele fugiu do hospital, quando lhe dissemos que podia ir, para que o exército congolês não o apanhasse…
Poderia ser uma história com um final feliz… mas, infelizmente para mim, não o é….
Um dia depois de ter ido à Zona Vermelha, desenrolaram-se conflitos terríveis, incluindo ataques de helicópteros em muitas das aldeias por onde passámos… Fico de coração partido, ao saber que muitos dos que cruzaram os olhos comigo, foram atacados, estarão algures em fuga e com as suas casas bombardeadas… Quem sabe quantos morreram?!?! Foi apenas “mais um” ataque tenebroso, em apenas “mais um” sítio que ninguém conhece…
Mas eu não posso fingir que não estive lá… que não vi as suas caras… e isso dói-me de tal forma… que quando penso nisto por vezes tenho dificuldades em respirar…
Triste também porque um ano e meio depois desta história o Phillipe foi assassinado ao serviço dos Médicos Sem Fronteiras, na Somália. Chorei baba e ranho durante horas, sem que pudesse partilhar com ninguém do meu mundo esta tristeza… Morreu um homem bom, morreu porque insistia em lutar por um mundo melhor. Tenho pena de nunca mais o voltar a ver…
Só espero nunca perder a inspiração que transborda das suas memórias… A ele agradeço o tanto que me ensinou, a ele dedico todas estas histórias…
Hurra Phillipe!! You will never be forgotten.