2. Duas Meninas Maravilhosas

Foi num domingo à tarde… muito poucas vezes tinha um domingo livre para relaxar… era mesmo assim… não havia mais ninguém para fazer o meu trabalho… e tínhamos de estar prontos para quando fosse necessário…

Sou chamado pelo rádio com a informação que acabam de chegar ao hospital feridos de guerra… Era frequente aos domingos… Demasiadas Kalashnikovs… Os militares embebedavam-se e por uma razão estúpida qualquer começavam aos tiros…

Quando cheguei ao hospital, os enfermeiros locais disseram-me que os feridos eram crianças!! Merda!! Fosse o que fosse, já era muito mau à partida… O meu coração começa a bater mais depressa, ainda antes de entrar no quarto onde elas estavam…

E ali estavam elas, duas meninas muito queridas… muito assustadas, aos gritos com dores… e muito sangue por todo o lado…

Noemie tem 10 anos e levou um tiro na parte superior do braço, o que causou uma enorme ferida com fractura do úmero.

Tuliza tem 4 anos e levou um tiro no pé, o que causou uma explosão de inúmeros ossos do seu pé, com um buraco tão grande que até dava para ver através dele.

Porquê?? Como é possível que alguém consiga fazer isto a estas duas meninas maravilhosas? Como é que alguém pode ser tão cruel?

Noemie e Tuliza são irmãs e a sua mãe trabalha num bar da cidade, e foi aí que dois militares bêbados entraram em discussões e confusões, e por uma razão qualquer começaram aos tiros… Mas, por motivos que desconheço, as únicas balas que fizeram estragos foram as que atingiram estas meninas… A vida é mesmo injusta para alguns…

As Kalashnikovs são armas de alta energia, uma vez que a bala entra no corpo e começa a girar numa direcção aleatória causando uma destruição inacreditável dos tecidos do corpo humano… Vou poupar-vos a ver as fotos das feridas mas acreditem em mim… são mesmo impressionantes…

Tivemos de levar uma e depois a outra para o bloco operatório. Elas perderam bastante sangue, mas as cirurgias decorreram sem grandes complicações. A Tuliza foi primeiro, bastante assustada não querendo largar a mãe que ficou ao seu lado, até que a anestesia fizesse efeito. Foi um caso complicado, sem raio-x é difícil saber ao certo a gravidade de cada uma das fracturas dos ossos do pé. Lavagem, desinfecção, remoção dos tecidos mortos e em vias de, e tentar imobilizar o pé numa posição em que as fracturas consolidassem de forma a que ela pudesse voltar a andar… tem apenas 4 anos! A Noemie foi logo depois. O buraco que tinha era tão grande quanto o seu braço magricelas, com uma fractura total do seu úmero e uma falha de osso de 10 cm, por explosão no impacto… Cenário horrível até para quem já viu muita coisa…

Não teve destruição de qualquer artéria ou nervo importante, o que em teoria dava alguma esperança para que um dia o seu braço pudesse ter alguma utilidade… Mas poderá usar o braço faltando-lhe uma parte do osso importante? Eu não sei responder a esta pergunta, ou não sabíamos com os meios que tínhamos à disposição… Ela não segura o braço, apesar de ser capaz de usar a mão… Talvez um dia, num programa de reabilitação especializado, alguém possa melhorar a mobilidade do seu membro… Pensar sempre positivo!! Fazemos o que podemos, passo a passo… mas nem sempre é suficiente…

Tal como era de esperar, ficaram muito tempo no hospital com idas extremamente frequentes ao bloco operatório. Desinfectar, desbridar, mudar o penso vezes e vezes sem conta, pois o grande risco reside no potencial de infecção que pode ser fatal. E então todo o cuidado era pouco para que isso não acontecesse… e felizmente conseguimos evitar que estas duas meninas maravilhosas tivessem qualquer complicação infecciosa.

Todos os dias as via… mesmo sem falar a língua, mas comunicando sem se saber muito bem como… brincava com elas imensas vezes e conquistei a minha importância na vida delas (e de outras crianças), enchendo vários balões que eram luvas de hospital transformadas em sorrisos voadores… Ao encher balões, o meu coração enchia-se de felicidade por conseguir dar-lhes um motivo para sorrir…

Noemie, era sensata e calma… nunca a vi triste ou a queixar-se, e tinha um sorriso tímido lindo com os seus olhos negros, grandes e profundos… Pura, humilde e genuína… Do que mais gostamos nas crianças em geral é o facto de serem tão puras e inocentes, mas estas crianças africanas levam esse paradigma ao seu expoente máximo…  São tão cheias de vida e de desejo de viver que nos seduzem a cada olhar, a cada sorriso… é impossível não sentir que o centro do mundo está ali, naqueles pequenos seres que pairam à nossa volta…

A Tuliza como podem ver, é mais para o “rechonchudinha”… E um dia ela estava muito rabugenta, a tentar bater na irmã e na mãe… e eu fiquei algo surpreendido porque não era normal…

Tentei perguntar à mãe, com algumas palavras e sinais para perceber o que se estava a passar. E a mãe apontou-me para o sinal que estava colado à cama onde se lia em Francês e Swahili: “ Não comer nem beber: dia da cirurgia.” Era bastante difícil explicar aos doentes que não podiam comer nem beber antes da cirurgia para segurança da anestesia, e esta mãe muitas vezes não resistia à tentação de dar comida às suas filhas, mesmo depois de eu ter explicado várias vezes, com a tradução dos locais, o que nos levava a ter que adiar e atrasar o tratamento crucial para estas meninas… E depois eu percebi!! Ahhh, Ahhh!! A Tuliza não estava de mau humor porque tinha de ir ao bloco operatório nesse dia, porque já o tinha feito várias vezes com ela ao meu colo bastante tranquila e calma a aceitando os tratamentos com serenidade… Ela estava a bater em toda a gente porque tinha fome!! E sobre isso, eu não podia fazer nada! Nem mesmo tentar arrancar-lhe um sorriso!

E este foi o único momento em que vi a Tuliza sem o seu sorriso enorme e encantador que animava até os mais deprimidos, e que a mim me deu uma lição para a vida! O seu sorriso era malandro, cheio de energia, dizendo-me o quanto amava a vida mesmo quando passava por esta situação terrível… Ela fez-me prometer a mim mesmo que nunca mais na vida voltaria a estar triste. É surreal, claro… mas como podemos nós estar infelizes? Quais são essas razões tão fortes que nos levam à tristeza? Quando esta menina de 4 anos que tem o seu pé completamente destruído por uma Kalashnikov, por um militar bêbado, que talvez nunca mais volte a andar normalmente, e ainda assim mantém este sorriso que é capaz de conquistar o mundo?! Com que direito é que podemos estar tristes? Eu vou sempre “usá-la” para recuperar o meu sorriso de cada vez que estiver triste…

Eu dei o meu melhor para o tratamento destas meninas, mas digo com toda a honestidade que elas deram-me muito mais do que eu lhes dei a elas… Elas deram-me uma lição de vida sem preço, e para sempre…

Nunca serei suficientemente capaz de lhes agradecer… mas com estas palavras simples, tento dedicar-lhes esta história, a elas e a tantas outras crianças que sofrem por causa desta guerra estúpida…

Obrigado Noemie e Tuliza, estarão no meu coração para sempre!

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